MAIS QUE MORTAL QUE A PRIMEIRA GUERRA: A CATÁSTROFE DA GRIPE ESPANHOLA
No início da década de 20, enquanto a Europa reunia os cacos do primeiro grande conflito mundial, um inimigo ainda mais devastador assustou o mundo todo e, em dois anos, matou mais de 30 milhões de pessoas: a gripe
MOACYR SCLIAR PUBLICADO EM 13/03/2020
Febre, dor de cabeça, dores no corpo, mal-estar geral, tosse e coriza: Esses sintomas todo mundo conhece — quem nunca ficou gripado? No entanto, esse quadro que hoje se resolve com um comprimido e alguns dias repouso podia significar uma sentença de morte se você vivesse no início do século, mais precisamente em 1918.
É que naquele ano uma epidemia de gripe se espalhou pelo mundo e matou entre 30 e 100 milhões de pessoas. A doença, uma variação do vírus da gripe comum, causava um terrível agravamento dos sintomas e ficou conhecida como gripe espanhola, ou apenas a espanhola.
Na época, ninguém conhecia a causa da doença. O microscópio já era usado e muitas bactérias causadoras de enfermidades tinham sido identificadas, já a partir do século 19. Mas os equipamentos não eram lá muito potentes e não podiam mostrar os vírus, que são muito menores que bactérias. Assim, a causa da gripe era (e permaneceu até recentemente) uma incógnita.
Ela era associada ao frio. O termo influenza, que é usado como sinônimo para gripe, fala disso. Vem do italiano influenza di freddo, “influência do frio” (de influenza surgiu o nome inglês para a gripe — flu). De fato, é uma doença dos meses frios. Nessa época, tendemos a ficar confinados em casa e o vírus pode passar facilmente de uma pessoa para outra.
Também não se tinha certeza que na Espanha tenham surgido os primeiros casos, ainda que o rei espanhol Afonso XIII tenha sido uma das primeiras vítimas ilustres da doença. Muitos pesquisadores defendem a ideia de que a doença começou não na Europa, mas nos Estados Unidos, e foi levada para a Europa pelos soldados que combateram na Primeira Guerra.
Ao certo, sabe-se que foi na Espanha que surgiram as primeiras notícias sobre a doença: o país, neutro no conflito, não impunha a censura à imprensa, como acontecia com as potências beligerantes.
Assim que a doença surgia em outros países, era logo chamada de “espanhola”. A moda de uns países atribuírem a outros a origem de doenças não é nova: quando a sífilis apareceu, na Idade Média, os franceses chamavam-na de “mal napolitano”, e os italianos de “mal francês”.
Mesmo a expressão gripe espanhola (ou ainda “La Dansarina”) deu lugar, em alguns países, a distintas denominações. Na Rússia soviética, era chamada febre siberiana; na Sibéria, febre chinesa; e na Espanha (que afinal também tinha de se defender), febre russa.
Todo mundo em pânico.
A enfermidade se disseminou rapidamente, chegando ao Sudeste Asiático, à China, ao Japão, ao Caribe, às Américas: cerca de um quinto da humanidade contraiu a doença. A letalidade — isto é, a proporção de mortes entre os doentes — era altíssima, duas vezes e meia maior que nos casos de gripe comum. Estima-se que a gripe tenha matado no mundo todo de 30 a 100 milhões de pessoas — muito mais que a Primeira Guerra (cerca de 15 milhões de vítimas) ou mais do que a AIDS.
A pandemia de gripe devastou populações inteiras. Alguns historiadores acham inclusive que a guerra de 1914-18 pode ter terminado mais cedo por falta de soldados. O fim da guerra, aliás, não significou o fim da pandemia: a Alemanha, derrotada, recebia de volta 6 milhões de ex-soldados desmoralizados e famintos. Isto sem falar em outras regiões do mundo, como África, Índia e China, onde a ausência de dados tornava impossível avaliar a extensão da hecatombe.
No Alasca, populações foram dizimadas pelo mal que os esquimós acreditavam ser causado por um “espírito branco”. Em Londres, cartazes afixados nos teatros proibiam expressamente tossir. E, nos Estados Unidos, o costume de apertar as mãos foi praticamente abandonado.
A doença se propagou em duas gigantescas ondas: a primeira, na primavera e no verão de 1918. Nessa fase, a gripe era muito contagiosa, mas causou relativamente poucas mortes. Em agosto, contudo, uma forma altamente virulenta da doença disseminou-se pelo mundo, chegando ao auge nos meses de setembro a novembro (ou seja, o outono do hemisfério norte).
A curva que mostrava os óbitos por faixas etárias tinha a forma de um W, com três picos, um correspondendo a crianças pequenas, outro a adultos jovens (o que era uma novidade; pensava-se que esse era um grupo mais resistente) e um terceiro, que era o dos idosos. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida, isto é, o número de anos que uma pessoa pode esperar viver desde o nascimento, foi reduzida em dez anos.
No Brasil.
Os brasileiros foram atingidos pela gripe antes mesmo que a doença chegasse ao país. Uma divisão que o governo enviara em navio para participar da guerra adoeceu enquanto a esquadra que transportava os militares estava ancorada em Dacar, Senegal: 156 mortos. E o país não poderia escapar à espanhola.
Ainda que as viagens aéreas, que difundiram a Sars (pneumonia que no ano passado causou pânico no Sudeste Asiático), não fossem comuns à época, muita gente viajava de navio — e o país estava recebendo então grandes contingentes migratórios.
Em setembro de 1918, chegava um navio com imigrantes vindos da Espanha, vários dos quais com sintomas de gripe. Outros navios foram apontados, entre eles o inglês Demerara, que atracou em Recife e Salvador, mas o certo é que no início de novembro de 1918 a doença já estava no Brasil. As cidades portuárias foram as que mais sofreram.
“Já morrem 24 pessoas por dia em Coritiba”, dizia uma manchete do dia 14 de outubro, fazendo referência à capital paranaense, posteriormente rebatizada para Curitiba. Na mesma data, um anúncio: “Precisa-se de dois cocheiros na Empresa Funerária de P. Falce”. Essas manchetes dos jornais da época reproduzidas no livro O Mez da Grippe (assim mesmo, com essa grafia), de Valêncio Xavier, dão uma ideia do quadro assustador.
A reação entre os curitibanos foi de pânico. Por causa disto, as notícias a respeito foram censuradas. O livro mostra a primeira página do jornal Diário da Tarde, em que, de um artigo sobre “A Influenza”, só ficou o título — o resto está em branco. Já o Comercio do Paraná adotou uma atitude diferente; a epidemia seria apenas uma gripe comum.
Mas teve de admitir, em 25 de outubro: “A nossa edição de ontem saiu muito além da expectativa em consequência de terem adoecido operários da secção da composição, obrigando-nos assim ao sacrifício de matéria redacional cuja inserção foi absolutamente impossível.”
Em outras cidades a repercussão não foi menor. A imprensa carioca estava cheia de notícias alarmantes — e de protestos contra as autoridades sanitárias, consideradas omissas: “O que se está passando na Saúde do Porto da nossa capital é simplesmente assombroso. Os navios entram infeccionados, os passageiros e tripulantes atacados saltam livremente contribuindo para contaminar cada vez mais a cidade, não sofrendo os navios o mais rudimentar expurgo! [...] Telegramas chegados ha dias de Estados do Norte, anunciaram detalhadamente dezenas de casos de ‘influenza hespanhola’ ocorridos a bordo da ‘Itassucê’. Era o caso do Sr. Carlos Seidl tomar providencias enérgicas, para isolar os enfermos e expurgar o navio, mal chegasse ele á Guanabara, si s.ex levasse a sério seus deveres. Nada disso, entretanto, aconteceu. O ‘Itassucê’ chegou, foi desimpedido e os doentes desceram calmamente á terra, sem que o diretor da Saúde Pública mandasse tomara mínima providencia!” (Rio Jornal, 11 de outubro de 1918).
Ou esta outra notícia: “Em todas as ruas, e a todas as horas, vemos cair subitamente, tombar sobre a calçada vitimas do mal estranho. Os hospitais estão repletos.” (Rio Jornal, 14 de outubro de 1918).
Recomendações médicas.
A criticada “medicina official”, como aconteceu com as autoridades em Curitiba, tentava minimizar o problema e evitar o pânico. Mas, no final de 1918, a gripe era, no Brasil e no mundo, uma realidade brutal.
O jornal A Rua, de 15 de outubro de 1918, fazia uma denúncia: “Desde as primeiras horas em que se declarou a epidemia que a romaria ás farmácias não parou nem um instante. Houve então uma grande desorientação e uma ignóbil exploração por parte de algumas farmácias. Os preços variavam de farmácia para farmácia e de bairro para bairro. O tubo de bromo-quinino passou a custar de 1500 a 8 mil e 9 mil réis. Uma limonada purgativa 4, 6 e 8 mil réis. Uma capsula com 25 ctgrs. de Sulfato de Quinino custava 400 réis, no máximo, custa 2 e até 3 mil réis! É o furto, parecendo que nem se quer estamos numa cidade policiada! Mas a necessidade era grande e os doentes nos milhares, o que fez com que apesar do descabido escandaloso dos preços, os medicamentos se esgotassem. Várias farmácias, especialmente nos subúrbios, alegam também a doença do seu pessoal. Que será da população sem ter sequer medicamentos?".
Esses medicamentos, diga-se, não tinham qualquer efeito sobre a doença. O quinino era usado para malária, que é, porém, uma enfermidade totalmente diferente da gripe, causada por protozoário e não por vírus. Também eram inócuos os “Conselhos aos que se acham no inicio da infecção”, dados pela Diretoria Geral de Saúde Pública, e que começavam com um purgativo forte (além de ter gripe, a pessoa ficava também com diarreia). Em termos de dieta, indicava-se a tradicional canja de galinha (que pelo menos, a exemplo da cautela, não fazia mal a ninguém).
O resultado foram saques aos armazéns atrás de frangos. Diante disso a Diretoria Geral de Saúde Pública voltou atrás: “O uso do frango ou da galinha não é indispensável. A dieta poderá ser mantida por meio de leite, caldo de sopa de cereais, de legumes, de lentilhas, de arroz, aveia, centeio, etc., etc.”
E continuava: “Fazer diariamente uso de uma solução de essência de canela, conforme as seguintes doses: uma colherinha das de café em meio copo de agua açucarada, de duas em duas horas, até desaparecer a febre. Depois tomar uma colherinha em meio copo de agua três vezes ao dia.”
Claro, é fácil achar graça dessas medidas quase 90 anos depois, mas os médicos recomendavam aquilo que imaginavam ser útil. É preciso dizer que a campanha contra a gripe era comandada por ninguém menos que o sanitarista Carlos Chagas, descobridor da doença que leva seu nome, grande pesquisador e um dos discípulos prediletos de Oswaldo Cruz.
Entre os conselhos da saúde pública, havia alguns apropriados: evitar aglomerações, guardar repouso em caso de doença. De qualquer maneira, o quadro era sombrio em 2 de novembro de 1918, Dia de Finados (“Nunca o dia dos mortos foi tão propriamente um dia de mortos como o de hoje”, dizia a manchete de A Noite).
No Rio de Janeiro morreram cerca de 12 mil pessoas em dois meses. Na cidade, como faltavam coveiros, presidiários foram convocados para fazer esse trabalho. Os corpos muitas vezes eram transportados em bondes. Os hospitais não tinham vagas e a hospitalização, por sua vez, não evitava o óbito. No Hospital Deodoro, na Glória, os cadáveres formavam uma pilha de 2 metros de altura. As ruas estavam desertas; as pessoas não se atreviam a sair.
Em Porto Alegre, foi criado um cemitério especialmente para as vítimas da gripe. Em todo o país foram cerca de 35 mil mortos. Nos últimos meses de 1918, uma esperança: o novo presidente seria Rodrigues Alves, conhecido por ter livrado, em seu primeiro mandato, a capital Rio de Janeiro de epidemias de febre amarela, peste e varíola. Mas ele não chegou a assumir o cargo. Morreu em 16 de janeiro de 1919, de gripe espanhola.
Dormindo com o inimigo.
A virologia progrediu imensamente com o susto de 1918. Mas só em 1933 o vírus da gripe foi isolado pela primeira vez, por Andrew, Smith e Laidlaw, na Inglaterra. Mas não era o agente causador da espanhola. Como era esse vírus? A dúvida persistia e motivou conhecidos pesquisadores, como os americanos Jeffery K. Taubenberger e Johan Hultin. Eles encontraram o vírus em cadáveres preservados pelo frio.
Em 1951, os cientistas da Universidade de Iowa exumaram corpos de vítimas da gripe sepultados no Alasca. Uma outra fonte de possível material eram amostras de tecidos obtidas em necropsias realizadas em 1918, que eram preservados em parafina.
Os esforços deram resultado. Uma amostra de tecido pulmonar de um soldado americano forneceu aquilo que Taubenberger e seus colaboradores ansiosamente buscavam: fragmentos intactos da substância viral, cuja composição pôde ser identificada. O mesmo se encontrou na amostra de um segundo cadáver. Hultin, por sua vez, isolou material viral dos pulmões de uma mulher da etnia inuit, conhecida como “Lucy”, sepultada no Alasca.
Taubenberg foi além e, em 2002, conseguiu criar um vírus com os genes mais letais do espécime de 1918 (esse revelou-se mais agressivo para os animais de laboratórios do que os outros ”fabricados” com genes do vírus da gripe habitual). O argumento para esse tipo de estudo é o de conhecer melhor o “inimigo”, identificar sua estrutura e descobrir como ela muda.
Muitos cientistas, contudo, fazem objeções a esse trabalho. Alegam que já temos um número suficiente de vírus gripais estudados e que “ressuscitar” o vírus de 1918 significaria “libertar o demônio”. Mas o receio de toda a comunidade é óbvio, sobretudo em uma época que transformou a guerra bacteriológica em ameaça e em obsessão. Como observou outro pesquisador, Jan van Aken, se Jeffery Taubenberger estivesse trabalhando num laboratório russo, chinês ou iraniano, seria visto como um inimigo em potencial.
Moacyr Scliar (1937-2011) foi médico e escritor brasileiro. Artigo publicado originalmente na versão impressa, 2005.
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