AGATHA CHRISTIE, O MAIOR MISTÉRIO DA RAINHA DO ROMANCE POLICIAL
Em 1926, a lendária escritora desapareceu, deixando para trás um carro batido. Quando ressurgiu, disse ter esquecido tudo. E até hoje ninguém sabe exatamente o que aconteceu - mas não faltam teorias
SÉRGIO MIRANDA PUBLICADO EM 06/12/2019
Naquela manhã fria de dezembro, uma garoa fina caía sobre a pequena cidade de Guilford, ao sul de Londres, quando um carro da polícia saiu da estrada e estacionou a alguns metros de outro veículo, que havia se chocado com uma árvore nas proximidades do lago.
O acidente parecia não ter sido muito grave, já que os danos ao carro eram mínimos. As duas portas do veículo estavam abertas. Nenhum sinal dos ocupantes, exceto por um par de luvas e um elegante casaco de pele deixado no banco de trás. Os papéis do veículo apontavam como proprietário o senhor Archibald Christie, morador de Berkshire, a alguns quilômetros dali.
Pouco depois, os policiais chegaram à residência de Christie e o que parecia apenas mais um acidente trivial dava início a um grande mistério. O carro, na verdade, pertencia à esposa de Archibald, a famosa escritora Agatha Christie, que na noite anterior, dia 3 de dezembro de 1926, por volta das 20h45, saíra de casa despedindo-se com um beijo em sua filha Rosalind. A família preparava-se para queixar-se do desaparecimento quando os policiais chegaram.
No mesmo dia, os vespertinos londrinos estampavam manchetes sobre o caso e especulavam: um rapto, um assassinato? O que teria acontecido, aos 36 anos, com a Rainha do Crime, a maior escritora do país?
Investigações
Em princípio, a polícia descartou as opções de rapto ou sequestro, já que não encontrou nenhuma nota, bilhete ou pedido de resgate. Como se fosse uma história de suspense da própria escritora, começaram a aparecer boatos de que ela havia morrido afogada no lago ou assassinada e enterrada no bosque onde o carro foi encontrado.
Logo as investigações descobriram um relacionamento extraconjugal do coronel Archibald Christie, piloto do Corpo Real de Aviadores durante a Primeira Guerra, com quem a escritora se casara em 1914 e teve Rosalind, então com 7 anos. O marido agora era suspeito do desaparecimento de Agatha Christie.
Veio a público o crescente distanciamento entre o casal após a compra de uma casa no campo, quando o coronel passou a dedicar a maior parte do seu tempo livre ao golfe. A crise aumentou com a morte da mãe de Agatha. A escritora teve de assumir a organização da propriedade da família, em Torquay, enquanto o marido, que trabalhava em Londres, passaria a pernoitar na capital inglesa.
Agatha passou todo o verão separando documentos e objetos antigos da família, decidindo o que seria doado, jogado fora ou distribuído entre os parentes. A tarefa contribuiu para aumentar o sofrimento pela morte da mãe e fazer com que a escritora mergulhasse em profunda depressão. No fim do verão, quando o casal se reencontrou, Archibald pediu o divórcio. Confessou que durante a temporada em Londres se envolvera com Nancy Neele e pretendia se casar com ela.
O interesse da população pelo mistério do desaparecimento aumentava a cada dia. Os britânicos passaram a acompanhar o caso nos jornais como quem lê um livro de Agatha Christie: ansiosos para chegar ao fim e descobrir quem cometera o crime.
Enquanto isso, a família se desesperava e o governo pressionava para que a polícia concluísse o caso. Até o consagrado escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930), criador de Sherlock Holmes, tentou ajudar nas investigações. Místico, Doyle chegou a levar uma das luvas encontradas no carro a um médium para uma análise espiritual. Outra escritora de romances policiais, Dorothy L. Sayers (1893-1957), também visitou o local do desaparecimento à procura de algumas pistas.
Hipóteses
Com a repercussão do caso, crescia a hipótese de que a escritora havia sido assassinada, já que dificilmente alguém que a tivesse visto com vida não saberia da história e a polícia seria logo avisada. Mas somente dez dias depois de buscas intensas os investigadores, avisados por um músico, encontraram Agatha Christie hospedada em um hotel de luxo em Harrogate, registrada com o nome de Teresa Neele (o mesmo sobrenome da amante de Archibald).
Um mistério havia sido resolvido para nascer outro, sem solução: o que levou a escritora a desaparecer?
A versão apresentada pela família, na época, foi a de que Agatha Christie havia perdido a memória depois do acidente de automóvel. Mas a própria escritora não revelou as razões de seu desaparecimento, o que acabou alimentando outras versões, como a de que arquitetara uma vingança pela traição do marido.
Ou uma pior, que ameaçava manchar a reputação da escritora: tudo não passara de uma estratégia para aumentar ainda mais as vendas de seus livros. No mesmo ano, com contrato assinado com uma nova editora, ela havia lançado O Assassinato de Roger Ackroyd.
A falta de explicações da escritora deixou que cada uma dessas teorias se espalhasse sem que, até hoje, nenhuma delas tenha sido comprovada. Inclusive a versão oficial da família.
Hotel do mistério
As investigações apuraram que a escritora realmente chocou seu carro contra uma árvore. Ela, então, apanhou a bolsa, saiu do carro, caminhou até a estação ferroviária mais próxima e tomou o trem para Harrogate, onde se hospedou em um luxuoso hotel, na verdade uma espécie de retiro no norte da Inglaterra, utilizando justamente o sobrenome da amante do marido. Os testemunhos dos empregados do hotel contam que a escritora apresentava-se como sendo da África do Sul e dizia que em breve voltaria à Cidade do Cabo.
Durante os dias em que esteve hospedada, Agatha passava a maior parte do tempo entretida com a leitura, inclusive dos jornais que estampavam notícias sobre seu desaparecimento. Foi vista tomando chá e interagindo normalmente com os outros hóspedes.
Chegou a dançar e a cantar com a banda que tocava no bar do hotel. Foi um dos músicos que reconheceu a escritora e avisou a polícia, que chegou ao hotel acompanhada de Archibald Christie para fazer o reconhecimento. Quando ele chegou ao lobby, Agatha o tratou como sendo seu irmão e, ao ver uma foto de sua única filha usando cabelos curtos, pensou que se tratava de um menino.
Esse estado de confusão mental serviu para que a família justificasse as ações da escritora como conseqüência de uma crise nervosa. Agatha buscou ajuda psiquiátrica junto aos melhores especialistas da Europa. Sem chegar a um diagnóstico sobre as razões do desaparecimento e, principalmente, a riqueza de detalhes de como ele havia ocorrido, os médicos indicaram o repouso e a volta ao trabalho como os melhores remédios para a escritora.
Nem um apalavra
E foi o que Agatha Christie fez. Divorciou-se, finalmente, em 1928 e dedicou-se cada vez mais a escrever seus mistérios. Dois anos depois, casou-se com o arqueólogo sir Max Mallowan, 14 anos mais jovem, mas manteve o sobrenome do primeiro casamento. Com Mallowan, Agatha conheceu diversos países do Oriente Médio e da África que serviriam de pano de fundo para vários de seus romances
Até sua morte, em 1976, Agatha Christie jamais voltou ao assunto de seu desaparecimento. Nem sua autobiografia, publicada um ano depois, explica o que de fato ocorreu. Para os estudiosos, uma única pista: em 1934, sob o pseudônimo de Mary Westmacott, a escritora publicou o livro The Unfinished Portrait (no Brasil, O Retrato), em que a personagem principal, Célia, pensa em suicídio após ser abandonada pelo marido. O enredo serviu para que biógrafos como o médico e escritor britânico Andrew Norman defendessem o esgotamento nervoso como causa do desaparecimento de Agatha Christie.
Em 2006, Norman publicou a biografia The Finished Portrait (“Retrato acabado”, inédito em português) em que defende que a escritora sofreu um tipo de amnésia conhecido como “estado de fuga” ou, em termos técnicos, um transe psicogênico. Como não se lembram de muitas coisas, as pessoas nesse estado inventam histórias e criam um novo personagem.
A explicação do médico
Segundo ele, com a depressão após a morte da mãe e o desespero decorrente da crise no casamento, estava criado um quadro propício para o desenvolvimento desse transe. Assim, Agatha teria saído de casa na noite de 3 de dezembro de 1926 para cometer o suicídio. Beijou a filha e, minutos depois, atirou o carro contra uma árvore. No choque, teria sofrido uma amnésia.
Para corroborar sua tese, Norman diz que a escritora, ao ser encontrada, apresentava sintomas típicos do tal transe, sem noção do que estava acontecendo e se comportando com naturalidade. Para o médico inglês, os psiquiatras da época ainda não tinham os conhecimentos necessários para estabelecer o diagnóstico.
Mas a nova luz jogada por Andrew Norman não parece suficiente para encerrar o mistério. Pelos menos para os mais fanáticos pela vida e obra da escritora. Embora calcado nas informações da época, na obra escrita por ela sob pseudônimo e nos estudos científicos mais recentes, para muitos fãs e pesquisadores o médico não tem como afirmar se Agatha Christie realmente sofreu um quadro de amnésia ou se estava consciente o tempo todo.
Afinal, para eles, soa improvável que uma pessoa que quer se matar (e que, afinal de contas, sabia muito bem como ser eficiente nisso) acabe se hospedando em um hotel de luxo com o mesmo sobrenome da amante do marido. Pelo visto, a escritora capaz de inventar as mais intrincadas soluções para os crimes em seus livros criou, afinal, um mistério sem solução para sua vida pessoal.
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