quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Edgardo Mortara: refém da Igreja Católica.

EDGARDO MORTARA: REFÉM DA IGREJA CATÓLICA

A triste vida do menino judeu italiano que foi tomado dos braços de seus pais pela Igreja Católica, para ser criado como cristão; causando um escândalo que marcou o fim de uma era
MARIA CAROLINA CRISTIANINI PUBLICADO EM 19/09/2019.
Quadro de 1862, por Moritz Daniel Oppenheim. Na vida real, padres não estavam presentes
Quadro de 1862, por Moritz Daniel Oppenheim. Na vida real, padres não estavam presentes - Getty Images
Os fatos ocorridos na casa da família Mortara entre 23 e 24 de junho de 1858 abalaram muito mais do que a cidade italiana de Bolonha, onde o pequeno Edgardo, seus pais e irmãos moravam. Aos meros 6 anos, ele era retirado dos braços da família e levado a Roma para viver sob a guarda do papa Pio IX.
Era uma ação de resgate. Ou assim viam seus captores. Aos 4 meses de vida, o bebê havia sido batizado em segredo. Isso tornava o menino, aos olhos da Igreja, um católico. Uma criança católica não poderia ser criada por família de outra fé. E os Mortara estavam entre os cerca de 200 judeus de Bolonha, uma pequena comunidade que praticava sua fé quase em segredo, sem rabino ou sinagoga.
O mundo estava diante da questão: vale mais a família ou a alma? Deveria Edgardo voltar para os pais, Momolo e Marianna, ou permanecer sob a vigilância e educação católicas? Estaria o abuso em afastar um menino do seio da família ou em forçar um cristão a ser criado como judeu? Ao menos poderia uma conversão assim ser considerada legítima? 
Batismo de emergência.
Nascido em 27 de agosto de 1851, Edgardo era o sexto filho entre os oito de Momolo e Marianna. Aos 4 meses de idade, como era tristemente comum então, adoeceu gravemente. Na década de 1850, cerca de 40% das crianças não chegavam aos 5 anos.
Anna Morisi era uma empregada católica que trabalhava na casa da família. Ela era analfabeta, mas uma coisa havia aprendido dos padres: crianças que não são batizadas não vão para o Céu.
O bebê, então, iria para o limbo, ou pior. Assim, ela tinha uma emergência em suas mãos. E fez o ritual ela própria. Mas o menino sobreviveu. E seu ato chegou ao conhecimento do padre Pier Feletti, o inquisidor de Bolonha.
Anna nem deveria estar ali. Os Estados Papais, dos quais Bolonha fazia parte, proibiam que judeus tivessem empregados cristãos. Mas a relação de trabalho acontecia mesmo assim, como forma de garantir tarefas domésticas feitas enquanto os judeus observavam o shabat – algo fora de cogitação com uma funcionária doméstica judia.
Na prática, as autoridades faziam vista grossa. Anna veio da aldeia vizinha de San Giovanni in Persiceto aos 18 anos, queria juntar dinheiro para um dote e futuro casamento. Ficou na casa dos Mortara até ser contratada por outra família de Bolonha em 1857. Pouco depois, se casou e voltou para seu local de origem. Mas, naquele mesmo 1857, em outubro, chegaria aos ouvidos de Feletti rumores sobre o batismo de Edgardo.
Casos como esse não eram raridade na Itália do século 19, e o contexto costumava ser o mesmo do ocorrido com Edgardo. Na tentativa de evitar algo assim, e correr o risco de perder os direitos sobre os filhos, muitas famílias judias faziam suas empregadas assinarem declarações negando terem batizado quaisquer de suas crianças. Precaução que a família Mortara não tomou.
Depois de identificar Anna Morisi por trás dos rumores, e receber permissão do Santo Ofício, Feletti começou o interrogatório. Ela declarou que, diante da doença de Edgardo, salpicou água em sua cabeça, dizendo: “Eu batizo você em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. Uma transcrição da conversa foi enviada para Roma. Junto, um pedido de permissão para remover o menino do convívio familiar e trazê-lo para ser criado pela Igreja.
Pio IX em 1871, por George Peter Alexander Healy / Crédito: Wikimedia Commons  
Não há registro exato sobre o quanto o papa Pio IX se envolveu nas discussões do Santo Ofício sobre o assunto ou se estava mesmo ciente da investigação inicial de Feletti.
A realidade era que, de acordo com a bula papal Postremo mense, de 1747, era ilegal tirar uma criança judia dos pais para o batismo – a não ser que ela estivesse morrendo, quando as considerações sobre salvar a alma superavam o direito dos pais. Essa exceção era pensada para uma criança que seria perdida pelos pais diante da fatalidade. Caso isso não se concretizasse, a Igreja se responsabilizaria por educá-la segundo o cristianismo.
Cena dolorosa.
Feletti ficou incumbido da remoção e transporte de Edgardo para a Casa dos Catecúmenos, em Roma, que recebia os recentemente convertidos ou aqueles em processo de aceitar o catolicismo. Um destacamento dos carabinieri, sob a liderança de Pietro Lucidi e Giuseppe Agostini, chegou ao apartamento dos Mortara no anoitecer de 23 de junho de 1858. Logo, Lucidi anunciou: “Senhor Mortara, sinto muito em informá-lo de que foi vítima de traição”.
O que se seguiu não é difícil de imaginar. Marianna, a mãe do garoto, se pôs a gritar, correndo para o quarto do filho e esbravejando que seria preciso matá-la primeiro. O próprio carabiniere Lucidi relatou depois: “Teria preferido mil vezes ser exposto a perigos muito mais sérios no desempenho de minhas tarefas do que ter que testemunhar uma cena tão dolorosa”.
A única esperança era apelar ao próprio Feletti, que recebeu Angelo Padovani, tio de Marianna e membro relevante da comunidade judaica de Bolonha, e Angelo Moscato, cunhado de Marianna. Sem resultado: o inquisidor alegou estar apenas executando ordens e não deu detalhes. Cedeu apenas ao pedido de que o garoto permanecesse mais um dia com a família. Dois homens ficaram de vigia para evitar fuga.
Toda a manhã de 24 de junho foi usada pela família em tentativas de derrubar as ordens de Feletti, sem sucesso. Perto do meio-dia, os Mortara decidiram tornar a separação o menos dolorosa possível. Os irmãos de Edgardo foram levados para visitar parentes, enquanto Marianna concordou, não sem relutar, em passar a tarde com uma família amiga. De acordo com relatos da época, o momento da retirada de Edgardo, às 20h, levou dois policiais às lágrimas. E Momolo ao desmaio.
Sem saber qual era o destino do garoto, a família focou os primeiros esforços na busca de apoio em outras comunidades judaicas pela Itália, incluindo Roma, e no exterior. Inicialmente ignorados pelo governo papal, os recursos de Momolo passaram a chamar a atenção depois que jornais reportaram o caso. Era um grande trunfo para os opositores do governo papal.
A Igreja sabia disso. Tanto que Giacomo Antonelli, cardeal secretário de Estado, organizou um encontro com o pai de Edgardo no começo de agosto de 1858. Prometendo que a questão seria encaminhada ao papa, permitiu que Momolo visitasse o filho regularmente. Uma demonstração, para David I. Kertzer, autor do livro O Sequestro de Edgardo Mortara, de que o caso do menino não era uma questão qualquer.
Não demorou até que os Mortara identificassem a responsável pelo batismo em segredo. Encontrada em San Giovanni in Persiceto, Anna contou tudo o que dissera a Feletti. A ideia de batizar Edgardo surgira após uma conversa com o vendedor Cesare Lepori. Ao mencionar a doença do garoto, Lepori teria ensinado o passo a passo do batismo. Anna guardou o segredo até Aristide, irmão de Edgardo, morrer com um 1 ano de vida em 1857.
Na época, a empregada de um vizinho disse a Anna que ela deveria ter feito o batismo. E então, para se defender, ela deu com a língua nos dentes, contando a história anterior. Ela chegou a concordar com o registro formal do relato, mas fugiu.
Abuso ou milagre?
Duas narrativas distintas seguiriam o caso Mortara por anos. Em parte, por causa da falta de provas e de relatos imparciais sobre o que acontecia nos encontros entre o pai e o menino, ocorridos entre a metade de agosto e a metade de setembro de 1858.
Na versão de Momolo Mortara, apoiada pela comunidade judaica na Itália e pela Europa, o garoto teria viajado de Bolonha a Roma aos prantos e desejava voltar para casa o mais rapidamente possível. Marianna estaria sendo torturada mentalmente com o afastamento do filho. 
Já os fatos contados pela ótica da Igreja falavam de um ordenamento divino. O batismo teria tirado Edgardo de uma vida de erro. Agora ele compartilhava da salvação cristã e se via perturbado pela negação dos pais em se converterem como ele.
Edgardo Mortara fotografado já adulto, como padre ordenado / Crédito: Reprodução 
Todas as versões católicas ainda falavam de uma fervorosa e rápida aceitação do cristianismo. Era comum dizer que Edgardo havia se transformado em prodígio. Uma testemunha ocular chegou a mencionar, ao jornal católico L'armonia Della Religione Colla Civiltà (A Harmonia da Religião com a Civilização), que o suposto ex-judeu teria aprendido o catecismo perfeitamente em poucos dias.
Um dos mais importantes artigos a favor da Igreja foi publicado no periódico jesuíta La Civiltà Cattolica (A Civilização Católica), em novembro de 1858 – na sequência citado pela Europa. Falava de uma criança implorando ao reitor dos catecúmenos para não mandá-la de volta, pois desejava crescer em uma casa cristã. O artigo ainda atribuía a seguinte frase a Edgardo: “Eu sou batizado, eu sou batizado e meu pai é o papa”.
De acordo com Kertzer, quem apoiava os argumentos pelo ponto de vista da Igreja parecia não se dar contar de que tudo parecia “muito bom para ser verdade". “Se Edgardo de fato disse a seu pai que não queria voltar com ele, que agora ele considerava o papa como seu verdadeiro pai e queria dedicar a sua vida para converter judeus, essa mensagem parece não ter ficado registrada em Momolo”.
Liberais, protestantes e judeus pelo continente ridicularizaram a imprensa católica. Um folheto publicado em Bruxelas, em 1859, concluiu: “Entre o milagre de um apóstolo de 6 anos de idade que quer converter judeus e o choro de uma criança que se mantém pedindo por sua mãe e suas irmãzinhas, nós não hesitamos por um momento”.
Guerra ideológica.
Diante dos pedidos da família, que se destroçava em Bolonha, Momolo Mortara deixou Roma. Mas não as tentativas de reaver o filho. Com a ajuda de Carlo Maggi, um juiz católico aposentado, um relatório foi criado para ser entregue ao papa.
No documento, constavam: uma declaração de Lepori, negando ter ensinado a Anna Morisi a prática do batismo, e um depoimento do médico da família Mortara, Pasquale Saragoni, reconhecendo a doença de Edgardo, mas negando que ele tivesse corrido risco de vida. Um relatório seguinte, de outubro, ainda incluiu o depoimento de oito mulheres e um homem, todos católicos, corroborando as alegações do médico e acusando Anna de atos de roubo e de ter comportamento sexual impróprio.
Na mesma época, Momolo decidiu que era hora de voltar a Roma, agora levando Marianna. A esperança era que a presença da mãe fizesse mais pressão sobre a Igreja e impressionasse a criança. Mas, antes de um possível encontro, o garoto foi levado para Alatri, a cerca de 100 quilômetros. Os Mortara seguiram seu rastro e acabaram presos, despachados para Roma. Então a Igreja cedeu e o menino foi trazido de volta para ver os pais.
As versões sobre o que aconteceu então têm um grande contraste. Pelas palavras de Marianna: “Ele perdeu peso e se tornou pálido; seus olhos estavam cheios de terror… Eu disse a ele que ele tinha nascido judeu como nós e, como nós, deveria sempre permanecer um [judeu], e ele respondeu: ‘Si, mia cara mamma, eu nunca me esqueceria de dizer o Shemá todos os dias’”. Do outro lado, segundo La Civiltà Cattolica, Marianna teria ficado furiosa ao ver um medalhão no pescoço de Edgardo com a imagem da Virgem Maria, arrancando-o.
Sem progresso em Roma, os pais voltaram para Bolonha em dezembro de 1858, e logo depois se mudaram para Turim. O caso já tinha se tornado uma enorme controvérsia na Europa e nos Estados Unidos, célebre não só para judeus mas para protestantes – o New York Times publicou mais de 20 artigos sobre o assunto apenas em dezembro de 1858. No Reino Unido, a revista Spectator apresentou a situação como evidência de que os Estados Papais tinham “o pior governo do mundo – o mais insolvente e o mais arrogante, o mais cruel e mais mesquinho”.
Edgardo Mortara, à direita, como sacerdote agostiniano/ Crédito: Wikimedia Commons 
Pio IX, tendo ou não se envolvido pessoalmente na decisão de tomar Edgardo dos pais, foi surpreendido pela repercussão internacional. E insistiu que o retorno de uma criança batizada para sua família não cristã era incompatível com a doutrina da Igreja.
A desaprovação da atitude do papa tornou-se uma questão diplomática. Napoleão III, imperador da França, via a situação como vergonhosa – o governo devia muito à guarnição francesa em Roma desde a aparição, em 1815, do Risorgimento (renascimento), movimento pela unificação da Itália. “Os Estados Papais eram tão odiados que só podiam ser defendidos por baionetas francesas”, diz Bruce Shelley em sua História do Cristianismo.
Inicialmente visto com bons olhos pelos liberais, Pio IX chegou a formular, em março de 1848, uma Constituição para os Estados Papais que dava à população certa participação no governo. Até mudar sua postura radicalmente com o assassinato de seu ministro da Justiça, Pellegrino Rossi. Uma revolução se formou em Roma e Pio fugiu. Só teve as rédeas da cidade e do governo de volta com a ajuda militar da França. Preferiu, a partir daí, manter o absolutismo.
O escândalo ao redor do caso Mortara insuflou os ânimos dos liberais italianos e enfraqueceu a posição da Igreja na diplomacia internacional. Diante da postura inflexível, o movimento pela unificação da Itália ousou avançar contra o território da Igreja. Entre 1859 e 1860, diversas áreas dos Estados Papais foram parar nas mãos dos nacionalistas. No ano seguinte, Vittorio Emanuele II seria proclamado rei da Itália.
A guarnição francesa seria retirada por conta da Guerra Franco-Prussiana (1870–1871),  algo que talvez não fosse possível sem os golpes na reputação da Igreja. Roma seria deixada para os italianos e se renderia em 20 de setembro de 1870. Era o fim dos Estados Papais.
Fato consumado.
Enquanto a Itália era revolucionada, o garoto seguiu seu destino. Em 13 de maio de 1859 veio a confirmação de que Edgardo havia se mudado para a basílica San Pietro in Vincoli, ainda em Roma, onde o papa decidiu que ele seria educado. Em dezembro, a família Mortara teve sucesso em pedir um inquérito sobre o caso.
Feletti, identificado como o autor da ordem de retirada de Edgardo dos pais, foi preso em 1860, julgado e absolvido – por agir de acordo com instruções do então governo. Aos 13 anos, no início de 1865, Edgardo se tornou noviço e adicionou o nome do papa ao seu: Pio Edgardo Mortara. Ainda houve contato com os pais por carta, mas a situação permaneceu inalterada. Aos 19 anos, foi viver na Áustria, sob um nome falso. Em 1873, na França, foi ordenado padre.
Momolo Mortara passou o resto da vida viajando pela Europa e falando sobre os fatos ocorridos com seu filho e família. Morreu em 1871. No mesmo ano da morte de Pio IX, 1878, Marianna Mortara foi até a França para encontrar o filho. Edgardo se mostrou desapontado pela recusa da mãe à conversão ao cristianismo. Ele acabaria morrendo em Liège, na Bélgica, em 1940.
A postura intransigente do papa, pondo tudo a perder, talvez  tenha vindo de um sincero apego ao garoto. De acordo com as memórias de Edgardo, escritas em 1888, Pio IX dedicava parte de seu tempo ao menino e chegou a dizer: “Meu filho, você me custou caro e eu tenho sofrido muito por sua causa”. Dirigindo-se a outros presentes na situação, continuou: “Os poderosos e os sem poder tentaram tirar esse menino de mim, e me acusaram de ser bárbaro e impiedoso. Eles choraram pelos pais dele, mas falharam em reconhecer que eu, também, sou seu pai”. 

Saiba mais
O sequestro de Edgardo Mortara, David I. Kertzer, Editora Rocco, 1998
História do cristianismo: uma obra completa e atual sobre a trajetória da igreja cristã desde as origens até o século XXI., Bruce Shelley, Editora Thomas Nelson Brasil, 2018

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