terça-feira, 3 de setembro de 2019

Átila, o huno: flagelo de Deus.

ÁTILA, O HUNO: FLAGELO DE DEUS

A história do grande conquistador que, por pouco, não eliminou Roma um século antes — e o império inteiro, não só a parte ocidental
ISABELLE SOMMA PUBLICADO EM 03/09/2019.


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Reprodução

O destino do maior e mais poderoso império sobre a Terra estava em jogo naquele dia 20 de junho de 451, em Châlons, ao norte do que hoje é a França. Aecius, um respeitado general romano, aguardava a chegada de seu inimigo.
O poderoso exército romano já havia conhecido dias melhores, mas mesmo assim Aecius tinha sob seu comando 160 mil homens, entre legionários de Roma e aliados bárbaros — que era como os romanos chamavam todos os povos europeus que não viviam dentro de seu império.
A formação do exército era pouco confiável, a tropa estava decadente e os salários eram pagos com atraso. Mas nada disso preocupava Aecius. O problema era seu oponente. Um homem cujo nome, em menos de 20 anos, tinha virado sinônimo de destruição e horror. O sujeito mais odiado de seu tempo já havia devastado boa parte da Europa e estava a caminho de seu coração: Roma. Era Átila, o rei dos hunos.


Os hunos, primeiro, empurraram outros povos bárbaros para dentro do Império Romano, depois eles mesmos partiram em direção a Roma / Crédito: Héctor Goméz

O comandante tinha razão em estar preocupado. Os hunos eram realmente terríveis. Em oposição às tribos germânicas, que cultivavam a terra e já conviviam numa boa com os romanos, eles permaneciam nômades, viviam de saques, dos resgates que exigiam daqueles que aprisionavam e da cobrança de proteção de quem não queria ser atacado.
Enfim, eles eram os bárbaros que botavam os bárbaros para correr. Segundo o historiador romano Marcelinus, eles lutavam como doidos e executavam qualquer um que não se rendesse. Eram grandes cavaleiros e, no início, utilizavam lanças e arco e flecha. Depois do contato com os romanos, adotaram catapultas, escudos e capacetes.
Novo líder.
Entre os chefes dessa turma estavam os irmãos Octar e Rua Mundzuc, e foi no meio dessa família que surgiu um novo rei. Átila provavelmente nasceu no atual território da Hungria, às margens do rio Danúbio.
Filho de Mundzuc, entre os anos de 435 e 440 ele herdou as terras de seu pai e de seus tios e ainda abocanhou o pedaço de seu irmão Bleda, depois de matá-lo. Ele virou líder dos hunos num momento em que a principal potência do mundo antigo estava prestes a ruir. “Na primeira metade do século 5, a parte ocidental do império quase foi substituída por reinos bárbaros”, diz Kenneth Dark, historiador da Universidade de Bristol, na Inglaterra.
A coisa andava tão feia que, no ano 410, Roma foi saqueada pelos visigodos. Foi a primeira vez em 800 anos que a cidade foi atacada por bárbaros.
Quase todos os relatos sobre Átila o descrevem como um monstro. A exceção é o historiador romano Prisco, que conheceu pessoalmente o general huno e descreve sua corte, às margens do rio Danúbio, como um lugar simples e organizado. Mas, no campo de batalha, o cara tinha fama de mau.
“Átila contava com um forte aliado: o medo que seus homens provocavam no inimigo. Com isso, ele conseguia altas somas em ouro simplesmente blefando”, diz Charles William King, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos.
Em 447, Átila devastou a Trácia, pilhou monastérios e vilarejos e destruiu plantações. O imperador do lado oriental, Teodósio II, aceitou pagar um tributo anual em ouro e terras para evitar o avanço dos hunos. Com o acordo garantido do lado oriental, Átila resolveu atacar o ocidente. Ele só precisava de um pretexto. Logo surgiu um. 


A linha de frente dos hunos usava cordas e redes para confundir os inimigos / Crédito: Héctor Goméz

 A irmã do imperador romano Valentiniano, Justa Grata Honoria, foi presa depois de engravidar de um funcionário da corte. Pensando em quem seria um rival à altura de seu irmão para salvá-la, Justa resolveu recorrer ao homem mais poderoso de que ouvira falar: ele mesmo, o rei dos hunos.
E enviou a Átila uma carta pedindo ajuda. Em troca, lhe cederia uma fatia generosa do Império. “Átila teria interpretado o pedido como uma proposta de casamento e, segundo autores medievais, exigiu metade do Império Ocidental”, diz King.
Será que isso é verdade? Não parece uma daquelas lendas medievais, com uma princesa raptada e um guerreiro partindo em sua salvação? Pode ser, mas o fato é que, por volta de 450, Átila começou a marchar em busca do que achava que era seu — fosse Justa Honória, fosse uma fatia do decadente Império Romano.
Com ele, seguiram mais de 300 mil homens, entre eles os agora aliados ostrogodos, burgúndios e alanos, além de alguns francos. O enorme exército invadiu a região do vale do rio Reno e não poupou ninguém. A aproximação dos hunos fez com que os romanos finalmente começassem a se organizar. E aí chegamos de volta a Châlon.
Na porta de Roma.
De repente, todo o destino da Europa estava em jogo. Se ganhasse, Átila teria caminho livre até Roma. Mas a superioridade numérica e a disciplina dos soldados romanos foram decisivas. Os hunos foram derrotados. Átila, segundo a tradição, estava se preparando para cometer suicídio caso seu acampamento fosse invadido quando recebeu a mensagem de Aecius, permitindo que ele e parte de seus homens se retirassem. Átila, humildemente, aceitou.
A vitória deu a Aecius o título de “o último dos romanos”, ou seja, o último general que honrou em campo a armadura que vestia. Mas sua tática de deixar o inimigo se recompor não foi nada inteligente. Átila invadiu a Itália em 452 e destruiu várias cidades, entre elas Milão. Aí ocorreu algo surpreendente. Ele estava a cerca de 200 quilômetros de Roma.
Um pulinho, para quem estava a mais de 3 mil quilômetros de casa. E, no entanto, após 13 dias acampado, deu meia-volta e se foi. Não se sabe por que Átila não seguiu em frente até Roma. Pode ser que ele estivesse doente demais para isso. Antes que pudesse partir, e tendo tomado para si uma nova esposa, Idilico, provavelmente uma princesa visigoda, Átila teve uma hemorragia estomacal. No dia seguinte ao casamento, o homem mais temido do mundo morreu.
“O reino de Átila desmoronou imediatamente. Em uma série de batalhas, os filhos de Átila foram vencidos por outros povos bárbaros”, diz Kulinowski. O império Romano não teve um destino muito melhor: também acabou, apenas 23 anos depois da morte de Átila.
Intriga da oposição. 


Os guerreiros / Crédito: Wikimedia Commons

Em todo o Império Romano do século 5, e também nos territórios bárbaros, o povo tinha mais medo de Átila do que do capeta. Um dos boatos mais conhecidos era o de que ele e sua turma comiam carne crua. Até aí tudo bem, afinal até hoje comemos sashimi, quibe cru e carpaccio.
O problema é que eles usariam a carne crua como sela. Ou seja, sentavam-se nela enquanto cavalgavam. Quando tinham fome, era só tirar uma lasquinha. Prisco, o único que conheceu Átila, afirmou que ele vivia numa espécie de reino na região da atual Hungria.
Ali havia um local para banhos, e comia-se muita carne, mas ela não era curtida em cima dos cavalos. E a história de que os hunos dormiam, comiam e faziam suas necessidades em cima do animal também é pura intriga dos romanos.
Outro relato, que chegou a ser reproduzido em pinturas por mestres como Rafael, foi o do encontro entre o papa Leão I e Átila. Segundo a lenda, ambos teriam batido um longo papo, em que Leão I teria convencido o “flagelo de Deus” a não destruir Roma.
Átila realmente recebeu o papa em seu acampamento. Mas ele não invadiu Roma por outro motivo. “Alguns de seus comandantes, incluindo ele próprio, caíram doentes, o que forçou a retirada”, afirma o professor Michael Kulikowski, da Universidade do Tennessee. Outro mito que chegou aos dias de hoje é o de que por onde Átila passava, não nascia grama. Segundo Ferrill, isso se deve ao estrago feio que ele causou na Gália.

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