A VIDA NA PRÉ-HISTÓRIA: ESQUEÇA O QUE VOCÊ SABE SOBRE OS HOMENS DAS CAVERNAS
Eles não costumavam viver em cavernas, nem puxavam as mulheres pelos cabelos. A rotina dos humanos pré-históricos era muito mais complexa do que parece
EDUARDO SZKLARZ PUBLICADO EM 16/09/2019
O desenho clássico da evolução humana mostra nossos antepassados em fila. Em uma ponta há um sujeito parecido com um chimpanzé. Na outra, os personagens vão ficando eretos e sem pelo, até chegar ao homem moderno: branco, alto, imponente. Graças a figuras como essa, nossas ideias sobre a Pré-História estão longe da realidade.
É que esse esquema linear, e um tanto racista, só mostra mudanças na biologia, sem nada dizer sobre a cultura e a conquista da natureza. Somos levados a pensar que só uma espécie habitou o planeta de cada vez e que o homem foi a figura central da evolução, cabendo à mulher um papel secundário. Elas estariam sempre à mercê do macho bruto, solitário e competitivo, que vivia nas cavernas e arrastava a companheira pelos cabelos.
A vida era muito mais rica do que nós, sapiens, imaginamos. Estudos mostram que o pessoal namorava, tocava instrumentos, trabalhava em conjunto e rezava à sua maneira. Como a Pré-História é imensa - vai dos primórdios até a invenção da escrita, há cerca de 5 mil anos -, a rotina mudou demais.
Primeiros passos.
Lucy exibia um corpinho escultural para quem viveu há 3,2 milhões de anos: 1 metro de altura e ancas largas. Tinha braços longos, pernas curtas e barrigão, como um chimpanzé. Mas o joelho e a pelve indicam que ela andava sobre os dois pés. "Tornar-se bípede foi talvez a primeira característica distintiva dos humanos", afirma o antropólogo Donald Johanson. Por isso, quando encontrou os restos de Lucy na Etiópia, em 1974, ele teve certeza: era um ancestral hominídeo.
Lucy mostra como as adaptações na biologia repercutiram em nossa cultura desde cedo. Quando ela veio ao mundo, as florestas da Etiópia estavam encolhendo devido a mudanças climáticas. Os hominídeos, então, desceram das árvores atrás de alimento. E desenvolveram um novo jeito de andar, deixando as mãos livres. Não tinham garras nem dentes afiados. Sua vantagem era outra e essencial: o cérebro.
Para obter pistas sobre os hábitos de Lucy e de seus pares, os cientistas estudam primatas não-humanos. "Orangotangos são solitários, gibões são monogâmicos, gorilas machos geralmente dominam haréns femininos e os chimpanzés vivem em comunidades promíscuas de machos e fêmeas", diz o biólogo Jared Diamond, da Universidade da Califórnia. Como os chimpanzés são nossos primos mais próximos, é possível que a sociedade de Lucy fosse, digamos, bem "liberal".
Há 2,5 milhões de anos, nossos ancestrais já talhavam a pedra sílex (flintstone, em inglês) para obter ferramentas toscas usadas para quebrar ossos e nozes. Também saberiam usar plantas medicinais, já que os chimpanzés comem certas folhas para combater parasitas do intestino. Mas, diferentemente dos Flintstones, eles não comiam bifes de dinossauros (extintos muito antes), e sim ovos, frutas, carcaças abandonadas e até insetos.
O Homo erectus teria sido o primeiro a controlar o fogo, entre 1 milhão e 500 mil anos atrás. Conseguia acender chamas batendo o sílex contra um cristal de pirita e usava as fogueiras para se aquecer, afugentar animais, endurecer as pontas de lanças. Foi o início da conquista da natureza.
Desde os tempos de Lucy, a seleção natural prevaleceu e muitas espécies desapareceram. Há 200 mil anos, porém, os homens se tornaram anatomicamente parecidos conosco: Homo sapiens. Ficaram mais inteligentes e solidários. "Com o crescimento do cérebro, as fêmeas sapiens precisaram comer mais proteínas para alimentar o feto. Já os machos podiam ter uma dieta mais simples.
Essa complementação teria feito surgir a noção de solidariedade própria da família", afirma o arqueólogo Jean Clottes, autor de La Prehistoria Explicada a los Jovenes. Os casais se tornaram mais estáveis e passaram a cuidar juntos dos filhos - que deixariam de ser meras crias.
"A partir de 100 mil anos atrás, a adaptação se deu mais em função de modelos culturais, já que nossa biologia permaneceu praticamente inalterada", diz Antonio Guglielmo no livro A Pré-História: Uma Abordagem Ecológica. Naquela época, o homem realizou os primeiros enterros na caverna de Qafzeh, Israel, revelando ter autoconsciência. Além disso, objetos colocados ao lado dos corpos indicam a crença na vida após a morte.
Eles provavelmente viviam em grupos que compartilhavam costumes e laços familiares. "Cada grupo seria formado por 20 ou 30 pessoas. Se fossem maiores, teriam problemas de abastecimento, e os muito pequenos dificilmente conseguiriam caçar e enfrentar ataques de animais", diz Clottes. "Não viviam muito. A maioria não passava dos 25 anos, mas alguns chegavam aos 60."
Havia intercâmbio entre os grupos: objetos similares foram encontrados em lugares distantes. Essa troca teria sido feita por aventureiros solitários ou por mais pessoas, até porque eles sempre se moviam em busca de recursos naturais. E, diferentemente do que muitos pensam, os humanos pré-históricos não costumavam viver em cavernas - identificadas com o sobrenatural. Eles moravam em cabanas feitas de peles, ossos e pedras.
Algumas cavernas, sim, eram habitadas, principalmente na Europa, mas sempre mais perto da superfície que do subterrâneo. A comida era assada em fogueiras ou cozida no que seria a primeira panela: um caldeirão feito de pele animal. Os homens aqueciam pedras na chama e as jogavam no caldeirão.
Em casos raros, eles poderiam se alimentar da própria espécie. Evidências indicam que essa prática ocorreu em várias épocas, fosse por fome, fosse para tentar adquirir o espírito do adversário. Na hora de se limpar, cutucavam os dentes com tocos de madeira e se banhavam nos rios. E para fazer as necessidades? Sem problema: eles eram poucos e a natureza... acolhedora.
Grande Salto Adiante.
Esse é o nome que os cientistas dão a uma enorme transformação ocorrida entre 60 mil e 50 mil anos atrás. "Viramos máquinas de inovação", afirma o cientista Spencer Wells. Passamos a fabricar ferramentas mais precisas, caçamos de maneira mais eficiente, enfim, produzimos tecnologia a partir das ideias.
Para Spencer, professor na Universidade Cornell, essa mudança só foi possível graças ao desenvolvimento da linguagem. Os humanos construíram estruturas mais complexas de palavras e sintaxe e puderam transferir pensamentos de uma mente para outra de modo mais eficaz. Uma vantagem e tanto, que ajudou a moldar o comportamento moderno e motivou a humanidade a sair da África e se espalhar pelo mundo.
Há 30 mil anos, exploradores da Europa e da Ásia sobreviveram com a ajuda de uma inovação: os microlitos, peças cortantes feitas de pedra, de 1 ou 2 centímetros, que eram fixadas na ponta de estacas. Dotados de saliências e reentrâncias, os microlitos aumentaram o poder de penetração de lanças e arpões e a caça ficou mais produtiva.
Já os nômades que chegaram à Sibéria descobriram uma ótima fonte de energia: os mamutes. Usaram ossos e o couro dos paquidermes para fazer roupas e abrigos portáteis em meio ao frio de 40 graus negativos. Para isso, contaram com outra inovação, a agulha de costura.
"A ideia de que nossos ancestrais andavam semidesnudos, com pele de animal colocada de qualquer jeito sobre o ombro, é tão falsa como a noção de que viviam nas cavernas", afirma Clottes. "Na última glaciação [80 mil a 12 mil atrás] fazia mais frio do que agora. Eles costuravam roupas com pelos e tendões de animais. Também usavam gorros e calçados de couro."
Artistas esculpiam pedras com figuras femininas, as Vênus. Para muitos antropólogos, elas aludiam ao culto da fertilidade. Mas o arqueólogo Timothy Taylor tem outro palpite: seriam versões da época de símbolos sexuais. Em The Prehistory of Sex (A Pré-História do sexo), ele sugere que práticas como sadomasoquismo e contracepção já eram comuns na época.
Nossos antepassados combinavam a caça com a coleta de vegetais. Pesquisadores sustentam que aquela sociedade era mais igualitária que a atual. "Em geral, os homens caçavam usando arco e flecha e lanças. Isso não quer dizer que mulheres e crianças não participassem. Os frutos coletados por elas chegavam a 70% da alimentação", diz Clottes. "De certa forma, a função delas era mais importante que a dos homens: muitas vezes eles voltavam da caça de mãos vazias". Portanto, eles eram na verdade coletores e caçadores.
Há indícios de que o trabalho tinha função lúdica, evitava a agressão e a dominação entre os membros do grupo. "Mesmo quem optasse por não caçar certo dia podia jantar a presa depois. Essa autonomia pode parecer radical hoje, mas os ajudou a sobreviver de forma relativamente pacífica durante milênios", diz Peter Gray, professor de Psicologia Evolutiva. Titular do Boston College, ele acredita que a violência entre esses grupos era muito menor que a do estado moderno.
Agricultura: avanço?
Encerrada a última era glacial, em cerca de 10 mil a.C., nossos antepassados deixaram a caça e a coleta para se dedicar ao cultivo de trigo, cevada e outros cereais. Afinal, eles contavam com um ambiente mais favorável, que os possibilitava o consumo de outros tipos de alimentos. O sedentarismo permitiu a construção de povoados maiores, com casas de barro, onde mais tarde foram domesticados os animais (inicialmente cachorros, ovelhas, cabras e porcos) e lançadas as bases do comércio.
Por volta de 4 mil a.C., surgiram as primeiras civilizações às margens dos rios Tigre, Eufrates, Nilo, Indo e Amarelo. O domínio da metalurgia impulsionou outras mudanças, assim como a invenção da escrita, que encerra a Pré-História. Para a maioria dos pesquisadores, a agricultura trouxe o progresso.
No entanto, há quem a defina como trágica. "Foi o pior erro da espécie humana", afirma Jared Diamond. Segundo ele, os novos cultivos trouxeram males como superpopulação, desmatamento, guerras e as diferenças sociais. E a África, de onde surgimos, sofre com a fome causada pelo suposto progresso que vivemos hoje em dia.
Saiba Mais
A Pré-História: Uma Abordagem Ecológica, Antonio Roberto Guglielmo, Brasiliense, São Paulo, 2008
The Third Chimpanzee (O terceiro chimpanzé, sem edição brasileira), Jared Diamond, Harper, Nova York, 2002
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