GALILEU GALILEI: DOS CÉUS À INQUISIÇÃO
O físico e astrônomo foi banido pela Igreja Católica por ensinar e defender a visão de que a Terra orbita o Sol
JOSÉ LOPES PUBLICADO EM 17/08/2019
Galileu Galilei, então professor da Universidade de Pádua, na Itália, apontou seu recém montado telescópio na direção de Júpiter e viu o que, de acordo com a tradição científica dominante na época, deveria ser impossível.
Havia três estrelas desconhecidas perto do planeta — mais tarde percebeu uma quarta. Os objetos pareciam bem menores que o astro e realizavam uma dança periódica em torno dele.
Embora muita gente ainda defendesse que a Terra era o centro do Universo, em torno do qual todos os outros corpos giravam, as estrelas na órbita de Júpiter sugeriam que a realidade era bem mais complicada.
Com essas observações, Galileu inaugurou o jeito moderno de fazer ciência. Cruzando dados do telescópio com modelos matemáticos rigorosos para tirar conclusões sobre como o Universo funcionava.
Para ele, os satélites de Júpiter, bem como a presença de montanhas e outras irregularidades na superfície da Lua, indicavam que os corpos celestes não eram imaculados e imutáveis, e que a própria Terra girava em torno do Sol.
Os achados foram descritos no livro Sidereus Nuncius, sucesso que atraiu a atenção de muita gente — inclusive os olhares indesejáveis da Inquisição.
Azar
Para azar de Galileu, seu trabalho pisou nos calos de uma Igreja Católica insegura e paranoica, que tentava se reerguer do baque provocado pela Reforma Protestante. É fato que a personalidade do pesquisador também não ajudava muito: marqueteiro e turrão, fazia questão de que suas ideias chegassem ao maior número de pessoas e sempre tentava achar brechas nas limitações impostas por Roma.
O resultado foi a condenação do gênio, um marco negativo das relações entre ciência e religião.
A paixão de Galileu pelos números parece ter vindo do berço. Parte do estímulo partiu do pai, o músico Vincenzo Galilei, o qual, apesar da pouca instrução formal, tinha ideias inovadoras sobre teoria musical, que pode ser encarada como um ramo da matemática. Galileu, filho mais velho de Vincenzo e Giulia, nasceu em Pisa, em fevereiro de 1564, e começou seus estudos num monastério perto de Florença.
Os primeiros anos de escola fizeram o menino se interessar pela vida religiosa, mas o pai, que tinha uma visão muito crítica da Igreja, não quis que ele se tornasse padre. A família, então, decidiu matriculá-lo no curso de Medicina, em Pisa.
A universidade local era considerada de segundo escalão, e as disciplinas médicas não empolgaram Galileu. Mas ele foi fisgado pelas aulas do professor de matemática Filippo Fantoni.
O rapaz passou a cabular as disciplinas que não tivessem a ver com números. Isso enfureceu o velho Vincenzo, que o tirou do curso de Medicina. Com o tempo, porém, o aspirante a matemático conseguiu convencer o pai de que podia ter futuro como professor universitário.
Na época, o jeito de obter esse tipo de cargo envolvia impressionar as pessoas certas e esperar que elas o indicassem. Enquanto ganhava uns trocados dando aulas particulares de matemática, Galileu fazia amizade com nobres da Toscana (sua região natal).
O jovem causou ótima impressão em 1588, ao dar uma palestra na Academia Florentina a respeito do... tamanho do Diabo, segundo a descrição de Dante Alighieri em A Divina Comédia.
Sim, o tema parece bizarro, mas era levado muito a sério pelos literatos do Renascimento. De acordo com os cálculos do moço, Lúcifer tinha 1800 metros de altura. A conferência fez tanto sucesso que, no ano seguinte, ele foi nomeado professor de matemática em Pisa.
Aristóteles
Galileu, porém, nunca foi muito querido entre os novos colegas. Isso porque passou a unir o rigor matemático a experiências cuidadosamente projetadas para tentar verificar se as concepções tradicionais sobre o movimento dos corpos na Terra e no céu, derivadas da obra de Aristóteles, realmente valiam. Isso equivalia a comprar briga, e das feias.
O filósofo grego era pagão, mas seus estudos tinham sido incorporados aos ensinamentos da Igreja no fim da Idade Média. A união entre a filosofia aristotélica e a teologia católica era tão estreita que, em muitos pontos, questionar as teses de Aristóteles significava pôr em dúvida a fé.
Mesmo os filósofos naturais (nome dado então aos cientistas) que não pertenciam à Igreja eram, em sua maioria, apegados a essas concepções, embora muitos deles também fossem religiosos.
"Havia uma estrutura acadêmica que o trabalho de Galileu afrontou — professores e estudiosos de formação aristotélica para os quais o estudo da natureza não se articulava com a matemática e com a experiência da maneira como Galileu o concebia", diz Júlio Vasconcelos, físico e filósofo da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).
"O status quo científico era dos aristotélicos, em particular dos jesuítas. Eles tentaram atacar Galileu inicialmente por suas ideias contrariarem Aristóteles, e não a Bíblia", afirma Marcelo Gleiser, físico do Dartmouth College (EUA).
O problema é que muitas das ideias do grego sobre física e astronomia eram, digamos, esquisitas. Aristóteles achava, por exemplo, que objetos mais pesados caem mais depressa que os mais leves.
Sua cosmologia punha a Terra no centro imóvel do Universo, cercada de esferas concêntricas correspondentes ao Sol, à Lua, aos planetas e às estrelas conhecidas na época. Nessas regiões celestes, nada mudava ou saía da ordem — corpos como cometas e meteoritos seriam fenômenos da atmosfera, como a chuva.
Derrubando pressupostos
Os experimentos de Galileu começaram a derrubar esses pressupostos, a começar pela descrição da queda de objetos. Resumindo: a massa deles não tem nada a ver com a velocidade em queda livre.
Ele também estudou o movimento de pêndulos e se viu às voltas com a dificuldade de conseguir medições exatas do resultado de seus experimentos — durante muito tempo, o pesquisador precisou improvisar, acompanhando o próprio pulso para estimar a duração de uma queda, por exemplo.
O interesse de Galileu em novas ideias acabou por queimá-lo de vez em Pisa, e seu contrato deixou de ser renovado em 1592. Mas ele conseguiu que a Universidade de Pádua, bem mais prestigiosa e liberal, aprovasse seu nome como docente, e para lá partiu, no mesmo ano.
Como o salário de professor não era lá essas coisas, tentava complementar a renda e ampliar sua reputação — fiel a seu estilo marqueteiro — bolando novos aparelhos. Um deles fez sucesso: a bússola geométrica e militar. Na verdade, era um proto computador que ajudava no cálculo de juros ou a determinar o ângulo correto de um canhão para acertar o alvo, por exemplo.
Não é de estranhar que ele tivesse boa cabeça para tecnologia. "Essa relação entre ciência e técnica na obra de Galileu é inovadora. Na época, os filósofos e os artistas ocupavam nichos distintos — os pintores e escultores eram também arquitetos e o que hoje chamamos engenheiros.
Eram considerados trabalhadores braçais e, por isso, um grupo menos digno que o dos filósofos. Mas Galileu sempre teve um relacionamento íntimo com artistas e artesãos", diz Marcelo Moschetti, filósofo e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (BA).
E foi a aptidão tecnológica que catapultou definitivamente Galileu ao estrelato. Aperfeiçoando ideias sobre como ampliar objetos distantes, que, aliás, já andavam circulando há tempos na Europa, ele montou seu telescópio e o apresentou ao governo de Veneza, seu patrono na época, já que Pádua era dominada pelos venezianos.
Os líderes concederam-lhe um belo aumento, mas ele ansiava por novos ares. Ao dedicar o Sidereus Nuncius a Cosimo II de Médici, grão-duque da Toscana, e ao batizar os satélites de Júpiter de "estrelas mediceanas" para homenagear a família nobre, Galileu conseguiu ser nomeado matemático e filósofo da corte dos Médici e voltou para sua terra natal.
Tudo parecia indicar que o cientista passaria o resto da carreira sossegado e bem pago em Florença, se não fosse por um detalhe crucial: no livro, ele declarara seu apoio às ideias do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), segundo as quais a Terra e os demais planetas giravam em torno do Sol, e não o contrário. É provável que Galileu Galilei já acreditasse nisso há muito tempo, tendo apenas "saído do armário" com a obra.
Na época, a Igreja Católica não havia condenado formalmente as teses de Copérnico, embora elas não pudessem ser conciliadas com uma interpretação literal da Bíblia. No Antigo Testamento, por exemplo, um trecho do livro de Josué diz que o Sol parou de girar em torno da Terra.
Puxão de orelhas
Há indícios de que acadêmicos ridicularizados por Galileu por causa das crenças aristotélicas se puseram a difamar o pesquisador no Vaticano, tentando obter uma declaração de que o copernicanismo era herético. Sabedor dessa oposição, Galileu, que nada tinha de ingênuo, tentou se proteger.
Declarando-se bom católico, ele divulgou publicamente o conteúdo de uma carta que trocou com a grã-duquesa Cristina da Toscana, na qual argumentava que a Bíblia "não ensina como vai o céu, mas sim como se vai para o céu", e só tratava de "verdades de fé".
Para ele, a matemática era a língua na qual Deus tinha escrito o livro do Universo, e ler esse livro também era adorar a Ele. A carta, porém, piorou a situação: muitos clérigos consideraram que o leigo queria propor interpretações teológicas.
Ela ainda procurou uma prova irrefutável do movimento da Terra, apostando que as marés podiam ser a resposta. Foi sua maior mancada científica: o fenômeno tem mais a ver com a atração gravitacional da Lua.
"Ainda que tenha apresentado evidências empíricas e argumentos de peso, ele não provou a rotação da Terra. A última pedra nesse processo foi posta por Léon Foucault, já no século 19", diz Eduardo Rodrigues da Cruz, físico e teólogo da PUC-SP.
Galileu teria sido afoito ao afirmar o movimento da Terra? "Afoito não, mas ousado, como todo gênio", diz o filósofo Eduardo Iamundo, da PUC-SP.
O fato é que ele recebeu um puxão de orelha considerável. Embora tratado de maneira cortês pelo cardeal Roberto Belarmino, o pesquisador foi advertido de que não poderia mais defender as ideias de Copérnico. E, pela primeira vez em mais de meio século, a obra copernicana foi impedida de circular pela Inquisição.
O matemático sentiu o baque, mas dias melhores viriam - ao menos aparentemente. Um amigo e fã, o cardeal florentino Maffeo Barberini, foi eleito papa em 1623: Urbano VIII. Galileu dedicou seu novo livro, O Experimentador, ao pontífice, e obteve autorização para debater em outra obra as ideias de Copérnico, desde que as apresentasse só como hipóteses.
Abusado?
A mesma discussão foi tema de seu livro seguinte, Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, de 1632. Logo ficou claro que Galileu tinha deixado de cumprir sua promessa ao papa. A obra traz uma conversa entre três personagens, Sagredo, Salviati (ambos velhos amigos do matemático, já mortos, então) e Simplício.
O que acontece é que os dois primeiros se mostram convencidos das ideias de Copérnico no decorrer do diálogo, enquanto apenas Simplício (nome que pode ser interpretado como simplório, bobalhão) se agarra ao velho modelo geocêntrico. Pior ainda, ele usa os argumentos mais fracos da obra — e são muito parecidos com os que o próprio papa já tinha usado antes.
Esse talvez tenha sido o erro crucial de Galileu. Acredita-se que o personagem Simplício não foi uma provocação deliberada ao pontífice. Mas o pesquisador teimoso pecou por excesso de confiança: achava que o papa deixaria tudo por isso mesmo.
Se pensava assim, enganou-se: Urbano VIII parece ter se sentido traído pelo cientista, e os inimigos do matemático no Vaticano não perderam tempo em explorar essa brecha.
Ele foi obrigado a comparecer diante da Inquisição, em Roma. Não foi torturado ou mandado para a prisão, mas ficou detido meses sob vigilância na embaixada romana de Florença, e depois em aposentos do palácio do Santo Ofício. Perto dos 70 anos de idade, ele teve de ficar de pé durante todas as sessões de inquérito e não teve direito a advogado.
As obras de Copérnico foram declaradas heréticas e Galileu, em 1633, teve de jurar nunca mais mencioná-las, sob risco de morte. Foi condenado à prisão perpétua, logo comutada para domiciliar.
Era uma pena leve comparada à do filósofo Giordano Bruno, queimado vivo em 1600. Mas além de se recusar a abandonar suas ideias científicas (dizia que o infinito Universo tinha muitas outras Terras), ele defendia teses contrárias à Igreja, como negar que Jesus fosse divino.
A derrota arrasou Galileu, mas não acabou com sua determinação para fazer ciência. Ele conseguiu publicar mais um livro na Holanda (país protestante onde, claro, o papado não tinha força) — fingiu que o manuscrito fora obtido sem seu consentimento.
Totalmente cego por causa de uma infecção, morreu em 1642. "Coube a Galileu a afirmação de uma nova concepção de ciência, na qual uma hipótese comprovada passa à condição de descrição do mundo", diz Iamundo.
É o tipo de triunfo que os tribunais não têm como anular, e que a própria Igreja acabou reconhecendo. Em 1992, o papa João Paulo II admitiu: "Graças à sua intuição como físico brilhante, Galileu entendeu por que apenas o Sol podia funcionar como centro do mundo então conhecido. O erro dos teólogos da época foi pensar que nosso entendimento do mundo físico era imposto pelo sentido literal da Sagrada Escritura".
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