BESTIÁRIO: A ORIGEM DE FIGURAS SURREAIS DO FOLCLORE MEDIEVAL
Imaginação fértil, medo e religiosidade deram origem a criaturas assustadoras
MARINA RIBEIRO E FÁBIO MARTON PUBLICADO EM 05/08/2019
Seres do tamanho de ilhas que afundam navios, dragões que destroem cidades inteiras, monstros devoradores de homens, sereias que encantam marinheiros, centauros letrados... É difícil compreender que muitas das figuras mitológicas que conhecemos dos livros um dia realmente atemorizaram alguém.
No entanto, como lembra o historiador francês Lucien Fèbvre, na Idade Moderna havia "excesso de plantas, de animais, de corpos minerais, de doenças, de tudo. O possível não se distinguia do impossível". Sem contar que, durante a Idade Média, a maior parte do mundo ainda era considerada terra incógnita.
Nesse contexto, seres fictícios nutriam as superstições e tomavam forma graças a artistas talentosos e estudiosos da Antiguidade. Santo Agostinho, um teólogo do cristianismo, foi um dos primeiros a perceber a importância dos monstros no imaginário da população.
Representações consideradas antinaturais seriam também, em sua visão, parte do plano divino. Como um adorno do universo para ensinar os homens sobre os perigos do pecado. Mais do que interpretar a presença desses entes, foi papel dos cristãos divulgar a existência de muitos deles — que, a partir dos séculos 12 e 13, passaram a ser frequentes na arte religiosa, considerados, como desejava Santo Agostinho, criaturas de Deus.
Além de enfeitar os templos, monstros e maravilhas encontraram seu lugar em bestiários — livros que somavam histórias e descrições de animais verdadeiros e imaginários —, fazendo com que a erudição enciclopédica e o pensamento religioso se reunissem.
Para a historiadora e colunista da AH, Mary Del Priore, em seu livro Esquecidos por Deus — Monstros no Mundo Europeu e Ibero-Americano (Séculos XVI-XVIII), "nesses bestiários, a ênfase na moralidade, apregoada pela Igreja Católica, passa a dar novo sentido alegórico aos monstros".
Com o objetivo de conciliar a filosofia com a crença popular, a Igreja buscou um significado espiritual nas entidades mitológicas e um ensinamento sobre bons costumes em suas aventuras — a exemplo de Leviatã, utilizado dessa maneira na Bíblia.
Primeiro enciclopedista cristão, Isidoro de Sevilha tornou-se a fonte na qual vários autores se abasteceram quando se tratava de contar histórias quase inacreditáveis. Uma de suas ideias era a de que não haveria forma de criatura vivendo na terra firme que não pudesse ser observada também no mar. A teoria remetia aos escritos do naturalista romano Plínio, o Velho.
Tal suposição gerou muitas criaturas marinhas exóticas e acabou batizando animais como leões-marinhos e porcos-do-mar (um parente do pepino-do-mar, que vive em grandes profundidades e tem pernas) — os nomes associados aos bichos podem não fazer muito sentido hoje, mas a imaginação medieval interpretava de maneira literal a relação de animais híbridos
Na época, grandes espécies desconhecidas também eram consideradas verdadeiras anomalias. Caso das baleias, que muitas vezes eram ilustradas como uma colagem de elementos de outros animais — e turbinadas com uma boa dose de imaginação. Com isso, trombas, patas, cascos, chifres e barbatanas formavam, a cada nova ilustração, uma figura diferente e ainda mais ameaçadora.
Muitos mapas medievais e da Renascença trazem exemplos de tais criaturas. "Aos nossos olhos, quase todos os monstros parecem bastante estranhos, mas, na verdade, muitos deles foram desenhados a partir do que os cartógrafos consideravam como registro científico", afirma Chet Van Duzer, autor de Sea Monsters on Medieval and Renaissance Maps (sem edição em português). "Assim, a maioria refletia um esforço por parte desses profissionais de serem precisos na descrição dos habitantes marinhos."
A partir do final do século 17, conforme a compreensão europeia da ciência foi crescendo e a imprensa tornou mais fácil a propagação de imagens realistas, os seres imaginários começam a desaparecer dos mapas.
As ilustrações passaram a ser mais pragmáticas, com os animais servindo para indicar áreas boas para a pesca. Em um mapa do começo do século, por exemplo, desenhos indicavam como matar e processar um enorme cetáceo. "As baleias, as maiores criaturas do oceano, já não eram monstros, mas, sim, depósitos naturais de mercadorias a serem aproveitados", escreveu Van Duzer.
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