sexta-feira, 27 de março de 2020

Saiba como foi a reclusão em Porto Alegre nos tempos da gripe espanhola.

No final de 1918, durante três meses, a capital gaúcha foi assolada por uma pandemia.
26/03/2020 - por Marcelo Kervalt.


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Carros da Brigada Militar ficavam a serviço da higiene pública

Revista Máscara / Reprodução
"Morria tanta gente que, em determinado momento, os cadáveres passaram a ser jogados nas calçadas. Presos de Porto Alegre, escoltados por policiais, recolhiam os corpos à noite com um carroção e os levavam para o cemitério da Santa Casa de Misericórdia. A cidade morreu, não se via ninguém na rua." Assim resumia a mãe do professor e historiador gaúcho Moacyr Flores quando perguntada sobre o auge da gripe espanhola em Porto Alegre, narrativa que ele jamais conseguiu esquecer.
— Eu não era vivo, obviamente, mas lembro bem desse relato. Até hoje tem lá no cemitério uma área sem túmulos que não se pode escavar. Utilizavam como vala comum — acrescenta.
Era 1918. A Europa estava convulsionada pela Primeira Guerra Mundial, iniciada quatro anos antes. As condições sanitárias mundiais eram péssimas, com epidemias cíclicas de sarampo, varíola, tifo, tuberculose, febre amarela e malária. Nesse ambiente insalubre, surgiu uma praga até então desconhecida, altamente contagiosa e letal, capaz de levar à morte em poucos dias ou até mesmo horas. A peste envelopou África do Sul, Índia, Nova Zelândia e América, matando ao menos 20 milhões de pessoas - 1,5% da população mundial. Ao fim, em janeiro de 1919, calcula-se que havia ceifado cerca de 450 mil vidas nos Estados Unidos e 5 milhões na Índia. Na Inglaterra e no País de Gales, os mortos chegaram a 200 mil. Na França, aproximadamente 500 mil soldados foram acometidos pela doença e 31 mil morreram. No Brasil, o saldo funesto foi de 300 mil mortes, número possivelmente subestimado, desconfiam historiadores, visto que inúmeros casos não eram oficializados.
A repulsa que a epidemia provocava lhe rendeu diversos apelidos, em geral de origem estrangeira. Ninguém queria assumi-la. Uma publicação feita pela Revista Máscara, semanário porto-alegrense da época, conta que na Rússia chamavam-na Febre Siberiana e na Sibéria, de Febre Chinesa. Na França, era Catarro Espanhol, ao passo que na Espanha foi batizada como Febre Russa. No Brasil e em algumas partes do mundo, ficou mais conhecida por Gripe Espanhola. Apesar dos gentílicos, ninguém sabe exatamente de onde viera nem como surgira. Diante de muitas teorias, a mais provável, segundo Janete Abrão em A História de Uma Epidemia: A "Hespanhola" em Porto Alegre, 1918, sua propagação e letalidade tinham sido influenciadas pela queda dos padrões sanitários e pelos efeitos da escassez alimentar provocada pela guerra. Especula-se que tenha começado a se espalhar no fim de 1917, a partir de um hospital de campo na Primeira Guerra Mundial instalado na França, quando os soldados infectados começaram a voltar para casa, ou através de um cozinheiro do Exército norte-americano que atuava nos campos de treinamentos militares dos Estados Unidos.
A Espanha, involuntariamente, teve seu nome atrelado à gripe por conta da transparência da imprensa nacional, descolada dos conflitos inerentes à Primeira Guerra Mundial. Enquanto espanhóis divulgavam dados da mortandade causada pela doença e os impactos devastadores, veículos dos demais países europeus eram silenciados pela censura e atribuíam os óbitos às batalhas e à fome. Médico aposentado e membro da Academia Rio-Grandense de Letras, Waldomiro Manfroi explica que, por isso, prevaleceu no Velho Continente a sensação de que a epidemia atingia mais agressivamente o território daquele país, ficando mais conhecida como gripe espanhola.    
A data fatídica para o Rio Grande do Sul


Descansar no Litoral era um remédio

Acervo do MUHM / Agencia RBS
No Estado, o vírus desembarcou no Porto de Rio Grande em 3 de outubro de 1918. O barco a vapor de nome Itajubá atracava, naquela manhã, com 38 tripulantes queixando-se de febre, calafrios, dor de garganta e de cabeça, tosse e falta de ar — também diarreia e catarro, mas somente nos casos mais graves. No dia 12, de outra embarcação, desceram mais 32 tripulantes tomados pela Hespanhola, na grafia da época. Em 16 de março, mais sete infectados pisavam em solo gaúcho, desta vez, na Capital.
Por semanas, a comunidade foi levada a acreditar pelas fontes oficiais do governo que poderia tratar-se de um surto de febre tifoide. Censurados, jornais circulavam com espaços programados para a cobertura da gripe em branco. Ainda assim, notícias chegavam a Porto Alegre, transmitidas por parentes que moravam no Rio de Janeiro, mas não validavam a retórica governista. Pululavam informações de que a nova doença se alastrava rapidamente por todos os bairros cariocas e já havia causado centenas de mortes. Inclusive, tomado de assalto o presidente eleito do Brasil, Rodrigues Alves — que viria a morrer da gripe sem tomar posse.
Aqui, enquanto pôde, o governo Borges de Medeiros insistia na oratória de que, dadas as ótimas condições de higiene do Estado e da população, se o vírus chegasse, teria caráter benigno. Mas precisou render-se. Com o agravamento da pior pandemia do século 20, o governo estadual pediu pelo jornal A Federação que não se fizessem romarias aos cemitérios, para evitar contaminação. Enquanto foi possível manter cerimônias fúnebres, os enterros realizavam-se à noite para evitar pânico. Coveiros, porém, adoeceram e os corpos se acumulavam no cemitério da Santa Casa. Abriram-se quatro valas, onde enterraram 258 cadáveres.
Todas as formas de aglomeração pública haviam sido suspensas. E muitas igrejas, ao contrário do que acontecera nas pestes do passado, agora fechavam suas portas. Até os cabarés sucumbiram à estranha doença e saíram de cena à espera da bonança. Aquele que seria o primeiro Campeonato Gaúcho de Futebol ficou eternamente suspenso. O triangular a ser disputado na Capital entre os campeões regionais foi adiado, sem nova data, em razão do desânimo dos clubes que viajariam a Porto Alegre e dos riscos que representaria o torneio. Brasil, de Pelotas, Cruzeiro, hoje de Cachoeirinha, e 14 de Julho, de Santana do Livramento, ainda reivindicam o reconhecimento de campeões estaduais de 1918 à Federação Gaúcha de Futebol
Limão, quinino, óleo de rícino e canja de galinha


Mercado Público virou um galinheiro.

Revista Máscara / Reprodução
No trecho a seguir do artigo escrito para o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Moacyr Flores resume o desarranjo social que permeava Porto Alegre:
"Em novembro fecharam os cinemas, cassinos, teatros, bares. A Rua da Praia ficou vazia, o tráfego de bondes diminuiu e o silêncio era quebrado pelos uivos dos cães e pelo dobrar dos sinos das igrejas. Faltavam pão e leite, que eram distribuídos de casa em casa por entregadores em carroça. Os alimentos e a lenha, principal combustível da época, dobraram de preço. O limão, o quinino para baixar a febre, o óleo de rícino para limpar o doente internamente rarearam e encareceram. Até o frango que se criava no quintal das casas e servia para preparar a canja, alimento tradicional dos doentes, ficou com o preço nas alturas".


Quinino baixava a febre.

Acervo do MUHM / Agencia RBS
Módica e nutritiva, a canja caiu no gosto dos porto-alegrenses. Era o papel higiênico de hoje. Passou a ser produto de primeira necessidade, para infortúnio das galinhas. O Mercado Público tornou-se o maior galinheiro já visto na Capital, com fornecedores de diferentes cidades ávidos por lucratividade. Os preços abusivos, que já beiravam a extorsão, tiveram um basta pelo canetaço do presidente do Estado, nome dado, à época, ao governador. Antônio Augusto Borges de Medeiros instituiu por decreto assinado no penúltimo dia de outubro de 1918 o Tabelamento Obrigatório de Preços — limitando valores de venda e quantidade de compra — e o Comissariado do Abastecimento e Socorros Alimentícios. Borges de Medeiros queria levar comida e remédio na casa das famílias abatidas pela Moléstia Reinante, outro epíteto que a doença carregava.
Era uma batalha travada contra um inimigo invisível, que fazia pessoas desmaiarem em praça pública por esgotamento físico e febre, resume a museóloga Angela Pomatti, do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM), curadora da exposição temporária Gripe Espanhola: A Marcha da Epidemia. Não havia microscópio eletrônico, portanto, não se sabia como era um vírus. A pesquisa feita por ela mostra que o governo queimava alcatrão na rua, com a falsa ilusão de que mataria esses micro-organismos invisíveis. Por puro desespero, pessoas colocavam naftalina no nariz para filtrar o ar, outro erro, que levou algumas à morte por intoxicação.
Nessa época, a cidade foi dividida em 33 quarteirões, cada um com seu médico. Esses passaram a atuar gratuitamente, tanto na zona designada quanto nos consultórios próprios. Referência na crise, a doutora Noemy Valle Rocha recebia doentes em sua clínica na Rua Sarmento Leite. A própria contraiu o vírus, se curou e voltou ao trabalho. Os médicos Carlos Mostardeiro e Ramiro Marques d'Ávilla não tiveram a mesma sorte. Mostardeiro formou-se em 1916 e, em outubro de 1918, foi nomeado responsável pelo 22º quarteirão, uma área delimitada pelas vias São Pedro, Benjamin Constant, Cristóvão Colombo, Ramiro Barcelos e Voluntários da Pátria. Morreu em razão da gripe em 6 de novembro, aos 27 anos. D'Ávila tombou em 8 de novembro, com a mesma idade e pela mesma causa.
Estudantes de medicina foram arregimentados e incumbidos a assistir os doentes a domicílio. Naquele ano, a Faculdade de Medicina de Porto Alegre não formou ninguém em sessão solene. Os estudantes que já estavam em condições de atender pacientes tiveram seu batismo na prática e ganharam o diploma por decreto no ano seguinte. Receberam apoio de religiosos, maçons e sindicatos de operários dispostos a prestarem socorro aos pobres e distribuir comida. Escolas, como a Souza Lobo e a Fernando Gomes, foram convertidas em postos de socorro provisórios; as associações civis e militares ofereceram suas sedes para serem transformadas em hospitais.  


Escola Fernando Gomes foi transformada em pronto-socorro.

Acervo Digital MUHM / Divulgação
"Assim como surgiu, de forma muito rápida também foi embora"
Em novembro, a doença atingiu seu auge e começou a declinar, desaparecendo totalmente em janeiro de 1919. Escolas reabriram os portões; cinemas e teatros reacenderam suas fachadas; e os cafés e os cassinos se encheram de frequentadores. A Rua da Praia perdeu seu aspecto doloroso dos meses anteriores, ainda que sentisse o peso de 3.017 mortes atribuídas à influenza no Estado na sua estadia de três meses, sendo 1.316 somente em Porto Alegre, segundo dados do Relatório da Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul. Mas muitos óbitos provavelmente não foram notificados às autoridades sanitárias. "Presume-se que pelo menos metade da população de Porto Alegre tenha sido simultaneamente atacada pela doença", explica Janete Abrão, em seu livro.
A museóloga Angela Pomatti complementa:
— Há registros de que o foco no Brasil começou em outubro de 1918 e, assim como a doença surgiu de forma muito rápida, também foi embora de forma muito rápida. Começou a ter queda em dezembro e em janeiro de 1919 já havia poucos casos. As principais vítimas eram homens em idade de trabalho, de 20 a 40 anos, público que precisava sair para trabalhar e acabava infectado.
Uma hipótese para a passagem ter sido curta — porém devastadora — é a não adaptação do vírus ao verão tropical. Europa e Estados Unidos viviam o auge do inverno.
Semente da organização sanitária e médica.


O Beneficência Portuguesa era um dos cinco únicos hospitais.

Acervo Digital MUHM / Divulgação

Em 1918, a Capital, de 163.500 habitantes, dispunha de parcos estabelecimentos de assistência médica, entre instituições oficiais e particulares, e reduzido número de profissionais de órgãos públicos: 56 pessoas. O serviço de atenção à saúde disponível resumia-se a cinco instituições: Santa Casa de Misericórdia, Hospital Beneficência Portuguesa, Hospital São Pedro, Hospital da Brigada Militar e Hospital de Isolamento São José. Para a remoção dos doentes, a cidade contava com dois carros mecânicos e seis de tração animal.
A ampliação da rede de esgotos, o abastecimento e tratamento da água, o recolhimento de lixo e a assistência pública, lembra a historiadora Janete Abrão, não eram prioridades na agenda política. Ao analisar a trajetória da epidemia em Porto Alegre, ela afirma que o impacto do surto epidêmico na cidade "foi, em boa parte, resultado da precariedade das condições sanitárias". Causou a elevação geral do custo de vida, fruto do desemprego e da escassez de gêneros no mercado interno: "Diante das graves carências alimentares, habitacionais e sanitárias, deterioraram-se ainda mais as condições de saúde da população". Waldomiro Manfroi, autor do livro A Saúde dos Ventos II (2017), que aborda o tema, acredita que o ambiente nocivo de Porto Alegre à época, com arroios correndo às margens do Centro Histórico, potencializou a tragédia sanitária:

— Rio de Janeiro e Porto Alegre eram duas das cidades mais insalubres do Brasil. E aqui continua assim, com esse arroio terrível (Dilúvio) cortando a cidade. Tu já sentiu o cheiro daquilo ali? Vencida aquela etapa, nada de importante foi feito depois para prevenir novas epidemias do ponto de vista higiênico — observa o ex-diretor da Faculdade de Medicina da UFRGS.  
Janete conta em seu livro que, enquanto a epidemia se propagava, medidas profiláticas eram improvisadas pelos poderes públicos, porém, tardiamente. Nos dias "em que a epidemia assolou Porto Alegre, ficaram demonstradas a incapacidade do Estado e a do município para debelar ou reduzir os efeitos funestos da epidemia". Em alguns artigos médicos da época, falava-se na importância de cuidar dos perdigotos, evitar aglomerações, não tossir, ter cuidados higiênicos com o nariz, repousar e ficar em casa. Idosos deveriam seguir essas orientações com ainda mais rigor. São medidas semelhantes às que os médicos pedem para ser adotadas para aplacar a covid-19.
— O que a gente aprende com a gripe espanhola, além da importância de lavar as mãos, de cobrir o rosto ao tossir e de se resguardar para não infectar outras pessoas, é a importância das vacinas. Outras doenças estão voltando, como o sarampo. Se as pessoas não se vacinarem, corremos o risco de voltar a poliomielite, erradicada do Brasil desde a década de 1980 —observa a historiadora e museóloga Angela. — Foi, também, a semente da organização sanitária e médica que hoje a gente vê. Começa a se pensar a cidade de forma mais sistematizada nesse período. Porto Alegre passa a ser dividida em zonas, não exatamente nos mesmos quarteirões, mas foi o início.  


Chargistas não perdiam a chance de fazer piada.

Acervo do MUHM / Agencia RBS

É possível comparar com o coronavírus?
A quebra de rotina a que a população foi submetida cem anos atrás escancara as semelhanças com a pandemia atual, por coronavírus. E a comparação pode ser feita também em alguns aspectos da medicina, que mais uma vez está enfrentando o desconhecido.
 — A situação é muito parecida. A gripe espanhola foi enfrentada sem vacina e sem um antiviral específico. Os métodos de diagnóstico eram rudimentares. As medidas de proteção, como o isolamento social, baseavam-se em avaliações clínicas, só que cem anos atrás. Mesmo com toda a tecnologia que temos hoje, o enfrentamento se equivale: sem vacina, sem antiviral específico e com testes-diagnósticos escassos. O avanço é que naquela época nem isso tínhamos. Estamos adotando novamente medidas primitivas, medievais de quarentena por conta do desconhecido — pontua Luciano Goldani, médico infectologista e professor do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Sobre o risco à vida, Goldani diz não haver como espelhar as duas pandemias:
 — É difícil comparar a agressividade da gripe espanhola com a do coronavírus, mas dá para dizer que a daquele vírus era maior, com taxa de mortalidade mais alta. Era, contudo, uma época em que não se tinha unidades de tratamento intensivo, antibióticos nem outros recursos tecnológicos que temos hoje. Por isso a dificuldade em equipará-las.
A doença em exposição.


Equipamentos usados pelos médicos da época.

Museu de História da Medicina do RS / Divulgação
Para lembrar os cem anos de uma das piores tragédias humanas, o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM) inaugurou em outubro de 2018 a exposição Gripe Espanhola: A Marcha da Epidemia. As historiadoras Angela Pomatti e Glaucia Lixinski Kulzer apresentam a trajetória da doença e seus reflexos não apenas no contexto mundial, mas também como ela alterou a rotina dos gaúchos. Ao recuperar informações publicadas na imprensa da época, documentos oficiais e imagens históricas, a mostra consegue recontar o impacto da gripe espanhola pelo mundo — as fotos que ilustram esta reportagem integram esse acervo. 
Devido ao coronavírus, a exposição foi suspensa por tempo indeterminado, mas deve ser reaberta assim que a situação normalizar. A intenção do presidente da Associação dos Amigos do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul, doutor Marcos Rovinski, é prolongá-la ao menos até setembro, dada a procura pelo assunto nos últimos tempos. O museu, mantido pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), fica na Avenida Independência, 270, em Porto Alegre. Após a crise, voltará a funcionar em horário normal: de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, com entrada franca. 


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