No final de 1918, durante três meses, a capital gaúcha foi assolada por
uma pandemia.
26/03/2020 - por Marcelo Kervalt.
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Carros da
Brigada Militar ficavam a serviço da higiene pública
Revista Máscara
/ Reprodução
"Morria
tanta gente que, em determinado momento, os cadáveres passaram a ser jogados
nas calçadas. Presos de Porto Alegre, escoltados por policiais,
recolhiam os corpos à noite com um carroção e os levavam para o cemitério da Santa Casa de Misericórdia. A cidade
morreu, não se via ninguém na rua." Assim resumia a mãe do professor e
historiador gaúcho Moacyr Flores quando perguntada sobre o auge da gripe
espanhola em Porto Alegre, narrativa que ele jamais conseguiu esquecer.
— Eu não era
vivo, obviamente, mas lembro bem desse relato. Até hoje tem lá no cemitério uma
área sem túmulos que não se pode escavar. Utilizavam como vala comum —
acrescenta.
Era 1918.
A Europa estava convulsionada pela
Primeira Guerra Mundial, iniciada quatro anos antes. As condições sanitárias
mundiais eram péssimas, com epidemias cíclicas de sarampo, varíola, tifo, tuberculose, febre amarela e malária.
Nesse ambiente insalubre, surgiu uma praga até então desconhecida, altamente
contagiosa e letal, capaz de levar à morte em poucos dias ou até mesmo horas. A
peste envelopou África do Sul, Índia, Nova Zelândia e
América, matando ao menos 20 milhões de pessoas - 1,5% da população mundial. Ao
fim, em janeiro de 1919, calcula-se que havia ceifado cerca de 450 mil vidas
nos Estados Unidos e 5 milhões
na Índia. Na Inglaterra e no País de Gales,
os mortos chegaram a 200 mil. Na França, aproximadamente 500 mil soldados foram
acometidos pela doença e 31 mil morreram. No Brasil, o saldo funesto foi de 300
mil mortes, número possivelmente subestimado, desconfiam historiadores, visto
que inúmeros casos não eram oficializados.
A repulsa que a
epidemia provocava lhe rendeu diversos apelidos, em geral de origem
estrangeira. Ninguém queria assumi-la. Uma publicação feita pela Revista
Máscara, semanário porto-alegrense da época, conta que na Rússia chamavam-na
Febre Siberiana e na Sibéria, de Febre Chinesa. Na França, era Catarro Espanhol, ao passo que
na Espanha foi batizada como Febre
Russa. No Brasil e em algumas partes do mundo,
ficou mais conhecida por Gripe Espanhola. Apesar dos gentílicos, ninguém sabe
exatamente de onde viera nem como surgira. Diante de muitas teorias, a mais
provável, segundo Janete Abrão em A História de Uma Epidemia: A
"Hespanhola" em Porto Alegre, 1918, sua propagação e letalidade
tinham sido influenciadas pela queda dos padrões sanitários e pelos efeitos da
escassez alimentar provocada pela guerra. Especula-se que tenha começado a se
espalhar no fim de 1917, a partir de um hospital de campo na Primeira Guerra
Mundial instalado na França, quando os soldados infectados começaram a voltar
para casa, ou através de um cozinheiro do Exército norte-americano que atuava
nos campos de treinamentos militares dos Estados Unidos.
A Espanha,
involuntariamente, teve seu nome atrelado à gripe por conta da transparência da
imprensa nacional, descolada dos conflitos inerentes à Primeira Guerra Mundial.
Enquanto espanhóis divulgavam dados da mortandade causada pela doença e os
impactos devastadores, veículos dos demais países europeus eram silenciados
pela censura e atribuíam os óbitos às
batalhas e à fome. Médico aposentado e membro da Academia
Rio-Grandense de Letras, Waldomiro Manfroi explica que, por
isso, prevaleceu no Velho Continente a sensação de que a epidemia atingia mais agressivamente
o território daquele país, ficando mais conhecida como gripe espanhola.
A data fatídica para o Rio Grande do Sul
Descansar no
Litoral era um remédio
Acervo do MUHM
/ Agencia RBS
No Estado, o
vírus desembarcou no Porto de Rio Grande em 3 de outubro
de 1918. O barco a vapor de nome Itajubá atracava, naquela manhã, com 38
tripulantes queixando-se de febre, calafrios, dor de garganta e de cabeça,
tosse e falta de ar — também diarreia e catarro, mas somente nos casos mais
graves. No dia 12, de outra embarcação, desceram mais 32 tripulantes tomados
pela Hespanhola, na grafia da época. Em 16 de março, mais sete infectados
pisavam em solo gaúcho, desta vez, na Capital.
Por semanas, a
comunidade foi levada a acreditar pelas fontes oficiais do governo que poderia
tratar-se de um surto de febre tifoide. Censurados, jornais circulavam com
espaços programados para a cobertura da gripe em branco. Ainda assim,
notícias chegavam a Porto Alegre, transmitidas por parentes que moravam
no Rio de Janeiro, mas não validavam a
retórica governista. Pululavam informações de que a nova doença se alastrava
rapidamente por todos os bairros cariocas e já havia causado centenas de
mortes. Inclusive, tomado de assalto o presidente eleito do Brasil, Rodrigues
Alves — que viria a morrer da gripe sem tomar posse.
Aqui, enquanto
pôde, o governo Borges de Medeiros insistia na oratória de que, dadas as ótimas
condições de higiene do Estado e da população, se o vírus chegasse, teria caráter
benigno. Mas precisou render-se. Com o agravamento da pior pandemia do século 20, o governo
estadual pediu pelo jornal A Federação que não se fizessem romarias aos
cemitérios, para evitar contaminação. Enquanto foi possível manter cerimônias
fúnebres, os enterros realizavam-se à noite para evitar pânico. Coveiros,
porém, adoeceram e os corpos se acumulavam no cemitério da Santa Casa.
Abriram-se quatro valas, onde enterraram 258 cadáveres.
Todas as formas
de aglomeração pública haviam sido suspensas. E muitas igrejas, ao contrário do que
acontecera nas pestes do passado, agora fechavam suas portas. Até os cabarés
sucumbiram à estranha doença e saíram de cena à espera da bonança. Aquele que
seria o primeiro Campeonato Gaúcho de Futebol ficou
eternamente suspenso. O triangular a ser disputado na Capital entre os campeões
regionais foi adiado, sem nova data, em razão do desânimo dos clubes que
viajariam a Porto Alegre e dos riscos que representaria o torneio. Brasil,
de Pelotas, Cruzeiro, hoje de Cachoeirinha, e
14 de Julho, de Santana do Livramento, ainda reivindicam o reconhecimento de
campeões estaduais de 1918 à Federação Gaúcha de Futebol.
Limão, quinino, óleo de rícino e canja de galinha
Mercado Público
virou um galinheiro.
Revista Máscara
/ Reprodução
No trecho a
seguir do artigo escrito para o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Moacyr Flores resume o
desarranjo social que permeava Porto Alegre:
"Em
novembro fecharam os cinemas, cassinos, teatros, bares. A Rua da Praia ficou vazia, o tráfego
de bondes diminuiu e o silêncio era quebrado pelos uivos dos cães e pelo dobrar
dos sinos das igrejas. Faltavam pão e leite, que eram distribuídos de casa em
casa por entregadores em carroça. Os alimentos e a lenha, principal
combustível da época, dobraram de preço. O limão, o quinino para baixar a
febre, o óleo de rícino para limpar o doente internamente rarearam e encareceram.
Até o frango que se criava no quintal das casas e servia para preparar a canja,
alimento tradicional dos doentes, ficou com o preço nas alturas".
Quinino baixava
a febre.
Acervo do MUHM
/ Agencia RBS
Módica e
nutritiva, a canja caiu no gosto dos porto-alegrenses. Era o papel higiênico de
hoje. Passou a ser produto de primeira necessidade, para infortúnio das
galinhas. O Mercado Público tornou-se o maior
galinheiro já visto na Capital, com fornecedores de diferentes cidades ávidos
por lucratividade. Os preços abusivos, que já beiravam a extorsão, tiveram um
basta pelo canetaço do presidente do Estado, nome dado, à época, ao governador.
Antônio Augusto Borges de Medeiros instituiu por decreto assinado no penúltimo
dia de outubro de 1918 o Tabelamento Obrigatório de Preços — limitando valores
de venda e quantidade de compra — e o Comissariado do Abastecimento e Socorros
Alimentícios. Borges de Medeiros queria levar comida e remédio na casa das
famílias abatidas pela Moléstia Reinante, outro epíteto que a doença carregava.
Era uma batalha
travada contra um inimigo invisível, que fazia pessoas desmaiarem em praça
pública por esgotamento físico e febre, resume a museóloga Angela Pomatti,
do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM), curadora da exposição
temporária Gripe Espanhola: A Marcha da Epidemia. Não havia
microscópio eletrônico, portanto, não se sabia como era um vírus. A pesquisa
feita por ela mostra que o governo queimava alcatrão na rua, com a falsa ilusão
de que mataria esses micro-organismos invisíveis. Por puro desespero, pessoas
colocavam naftalina no nariz para filtrar o ar, outro erro, que levou algumas à
morte por intoxicação.
Nessa época, a
cidade foi dividida em 33 quarteirões, cada um com seu médico. Esses passaram a
atuar gratuitamente, tanto na zona designada quanto nos consultórios próprios.
Referência na crise, a doutora Noemy Valle Rocha recebia doentes em sua clínica
na Rua Sarmento Leite. A própria contraiu o vírus, se curou e voltou ao
trabalho. Os médicos Carlos Mostardeiro e Ramiro Marques d'Ávilla não tiveram a
mesma sorte. Mostardeiro formou-se em 1916 e, em outubro de 1918, foi nomeado
responsável pelo 22º quarteirão, uma área delimitada pelas vias São Pedro,
Benjamin Constant, Cristóvão Colombo, Ramiro Barcelos e Voluntários da Pátria.
Morreu em razão da gripe em 6 de novembro, aos 27 anos. D'Ávila tombou em 8 de
novembro, com a mesma idade e pela mesma causa.
Estudantes de medicina foram
arregimentados e incumbidos a assistir os doentes a domicílio. Naquele ano, a
Faculdade de Medicina de Porto Alegre não formou ninguém em sessão solene. Os
estudantes que já estavam em condições de atender pacientes tiveram seu batismo
na prática e ganharam o diploma por decreto no ano seguinte. Receberam apoio de
religiosos, maçons e sindicatos de operários dispostos a prestarem socorro aos
pobres e distribuir comida. Escolas, como a Souza Lobo e a Fernando Gomes,
foram convertidas em postos de socorro provisórios; as associações civis e
militares ofereceram suas sedes para serem transformadas em hospitais.
Escola Fernando
Gomes foi transformada em pronto-socorro.
Acervo Digital
MUHM / Divulgação
"Assim como surgiu, de forma muito rápida
também foi embora"
Em novembro, a
doença atingiu seu auge e começou a declinar, desaparecendo totalmente em
janeiro de 1919. Escolas reabriram os portões; cinemas e teatros reacenderam suas
fachadas; e os cafés e os cassinos se encheram de frequentadores. A Rua da
Praia perdeu seu aspecto doloroso dos meses anteriores, ainda que sentisse o
peso de 3.017 mortes atribuídas à influenza no Estado na sua estadia de
três meses, sendo 1.316 somente em Porto Alegre, segundo dados do Relatório da
Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul. Mas muitos óbitos provavelmente não
foram notificados às autoridades sanitárias. "Presume-se que pelo menos
metade da população de Porto Alegre tenha sido simultaneamente atacada pela
doença", explica Janete Abrão, em seu livro.
A museóloga
Angela Pomatti complementa:
— Há registros
de que o foco no Brasil começou em outubro de 1918 e, assim como a doença
surgiu de forma muito rápida, também foi embora de forma muito rápida. Começou
a ter queda em dezembro e em janeiro de 1919 já havia poucos casos. As
principais vítimas eram homens em idade de trabalho, de 20 a 40 anos, público
que precisava sair para trabalhar e acabava infectado.
Uma hipótese
para a passagem ter sido curta — porém devastadora — é a não adaptação do vírus
ao verão tropical. Europa e Estados
Unidos viviam o auge do inverno.
Semente da organização sanitária e médica.
O Beneficência
Portuguesa era um dos cinco únicos hospitais.
Acervo Digital
MUHM / Divulgação
Em 1918, a
Capital, de 163.500 habitantes, dispunha de parcos estabelecimentos de
assistência médica, entre instituições oficiais e particulares, e reduzido
número de profissionais de órgãos públicos: 56 pessoas. O serviço de atenção à
saúde disponível resumia-se a cinco instituições: Santa Casa de
Misericórdia, Hospital Beneficência Portuguesa, Hospital
São Pedro, Hospital da Brigada Militar e Hospital de
Isolamento São José. Para a remoção dos doentes, a cidade contava com dois
carros mecânicos e seis de tração animal.
A ampliação da
rede de esgotos, o abastecimento e tratamento da água, o recolhimento de lixo e
a assistência pública, lembra a historiadora Janete Abrão, não eram prioridades
na agenda política. Ao analisar a trajetória da epidemia em Porto Alegre, ela afirma
que o impacto do surto epidêmico na cidade "foi, em boa parte, resultado
da precariedade das condições sanitárias". Causou a elevação geral do
custo de vida, fruto do desemprego e da escassez de gêneros
no mercado interno: "Diante das graves carências alimentares,
habitacionais e sanitárias, deterioraram-se ainda mais as condições de saúde da
população". Waldomiro Manfroi, autor do livro A Saúde dos Ventos
II (2017), que aborda o tema, acredita que o ambiente nocivo de Porto
Alegre à época, com arroios correndo às margens do Centro Histórico,
potencializou a tragédia sanitária:
— Rio de
Janeiro e Porto Alegre eram duas das cidades mais insalubres do Brasil. E aqui
continua assim, com esse arroio terrível (Dilúvio) cortando a cidade. Tu
já sentiu o cheiro daquilo ali? Vencida aquela etapa, nada de importante foi
feito depois para prevenir novas epidemias do ponto de vista higiênico —
observa o ex-diretor da Faculdade de Medicina da UFRGS.
Janete conta em
seu livro que, enquanto a epidemia se propagava, medidas profiláticas eram
improvisadas pelos poderes públicos, porém, tardiamente. Nos dias "em que a
epidemia assolou Porto Alegre, ficaram demonstradas a incapacidade do Estado e
a do município para debelar ou reduzir os efeitos funestos da epidemia".
Em alguns artigos médicos da época, falava-se na importância de cuidar dos
perdigotos, evitar aglomerações, não tossir, ter cuidados higiênicos com o
nariz, repousar e ficar em casa. Idosos deveriam seguir essas
orientações com ainda mais rigor. São medidas semelhantes às que os médicos
pedem para ser adotadas para aplacar a covid-19.
— O que a gente
aprende com a gripe espanhola, além da importância de lavar as mãos, de cobrir
o rosto ao tossir e de se resguardar para não infectar outras pessoas, é a
importância das vacinas. Outras doenças estão voltando, como o sarampo. Se as
pessoas não se vacinarem, corremos o risco de voltar a poliomielite, erradicada do Brasil desde a
década de 1980 —observa a historiadora e museóloga Angela. — Foi, também, a
semente da organização sanitária e médica que hoje a gente vê. Começa a se
pensar a cidade de forma mais sistematizada nesse período. Porto Alegre passa a
ser dividida em zonas, não exatamente nos mesmos quarteirões, mas foi o início.
Chargistas não
perdiam a chance de fazer piada.
Acervo do MUHM
/ Agencia RBS
É possível comparar com o coronavírus?
A quebra de
rotina a que a população foi submetida cem anos atrás escancara as semelhanças
com a pandemia atual, por coronavírus. E a comparação pode ser feita também em
alguns aspectos da medicina, que mais uma vez está enfrentando o desconhecido.
— A
situação é muito parecida. A gripe espanhola foi enfrentada sem vacina e sem um
antiviral específico. Os métodos de diagnóstico eram rudimentares. As medidas
de proteção, como o isolamento social, baseavam-se em avaliações clínicas, só
que cem anos atrás. Mesmo com toda a tecnologia que temos hoje, o enfrentamento
se equivale: sem vacina, sem antiviral específico e com testes-diagnósticos
escassos. O avanço é que naquela época nem isso tínhamos. Estamos adotando
novamente medidas primitivas, medievais de quarentena por conta do desconhecido
— pontua Luciano Goldani, médico infectologista e professor do Serviço de Infectologia
do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Sobre o risco à
vida, Goldani diz não haver como espelhar as duas pandemias:
— É
difícil comparar a agressividade da gripe espanhola com a do coronavírus, mas
dá para dizer que a daquele vírus era maior, com taxa de mortalidade mais alta.
Era, contudo, uma época em que não se tinha unidades de tratamento intensivo,
antibióticos nem outros recursos tecnológicos que temos hoje. Por isso a
dificuldade em equipará-las.
A doença em exposição.
Equipamentos
usados pelos médicos da época.
Museu de
História da Medicina do RS / Divulgação
Para lembrar os
cem anos de uma das piores tragédias humanas, o Museu de História da Medicina
do Rio Grande do Sul (MUHM) inaugurou em outubro de 2018 a exposição Gripe
Espanhola: A Marcha da Epidemia. As historiadoras Angela Pomatti e Glaucia
Lixinski Kulzer apresentam a trajetória da doença e seus reflexos não apenas no
contexto mundial, mas também como ela alterou a rotina dos gaúchos. Ao
recuperar informações publicadas na imprensa da época, documentos oficiais e
imagens históricas, a mostra consegue recontar o impacto da gripe espanhola
pelo mundo — as fotos que ilustram esta reportagem integram esse acervo.
Devido ao
coronavírus, a exposição foi suspensa por tempo indeterminado, mas deve ser
reaberta assim que a situação normalizar. A intenção do presidente da
Associação dos Amigos do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul,
doutor Marcos Rovinski, é prolongá-la ao menos até setembro, dada a procura
pelo assunto nos últimos tempos. O museu, mantido pelo Sindicato Médico do Rio
Grande do Sul (Simers), fica na Avenida Independência, 270, em Porto Alegre.
Após a crise, voltará a funcionar em horário normal: de segunda a sexta-feira,
das 10h às 18h, com entrada franca.
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