ALIMENTAÇÃO PRECÁRIA, RATOS E TROCA DE EMBARCAÇÕES: A VIAGEM INFERNAL DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA PARA O BRASIL
O trajeto entre Lisboa e Rio de Janeiro foi cheio de percalços
ANDRÉ LUIS MANSUR PUBLICADO EM 30/03/2020
Se atravessar o oceano num barco à vela até hoje exige uma senhora coragem, imagine 200 anos atrás. No início do século 19, cruzar o Atlântico era um desafio repleto de perigos. Principalmente, levando-se em conta que os navios usados na mudança da corte para o Brasil, em 1807, eram verdadeiras “latas-velhas” – desconfortáveis, vulneráveis no caso de combate e carentes de reparos.
Ainda naquele 29 de novembro, dia da partida de Lisboa, a esquadra portuguesa – composta por 19 navios – encontrou-se com a frota britânica que a escoltaria até o Brasil – outras 13 embarcações.
Essa deve ter sido uma cena monumental, de ficar gravada para o resto da vida na memória de quem a testemunhou: 32 barcos de guerra, mais uns 30 navios mercantes, preparando-se para a travessia oceânica.
Às três horas da tarde, o comandante da Armada britânica, Sidney Smith, ordenou uma salva de 21 tiros de canhão. Estava marcado o início da penosa jornada da família real em direção à colônia.
Perrengue
Algo entre 10 mil e 15 mil portugueses – cerca de 5% da população do país – estavam embarcados naqueles navios. Na maioria, era gente importante, muito afeiçoada aos luxos da nobreza. Mas as condições a bordo não eram nada agradáveis. A água era escassa, de má qualidade. E a comida não passava de carne salgada e biscoitos.
Em pouco tempo, o mantimento já estava contaminado por vermes. Animais vivos também foram embarcados, para garantir um pouco de leite, ovos e alguma carne fresca que pudesse ser servida aos passageiros mais chiques. Portanto, dá para supor que as condições de higiene estavam longe do aceitável.
No Afonso de Albuquerque, navio em que viajava Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigaria todas as mulheres – incluindo a princesa – a raspar o cabelo. Ratos eram abundantes nas embarcações, o que só aumentava o risco de uma epidemia. Por causa da alimentação precária, distúrbios intestinais tornaram-se comuns. Para os nobres portugueses em fuga, a situação não poderia ser mais constrangedora.
Dom João e sua mãe, a rainha Maria I, estavam no navio Príncipe Real – acompanhados de Pedro e Miguel, os dois filhos do príncipe regente com Carlota. Quatro das seis filhas do casal viajavam com a mãe, no Alfonso de Albuquerque. E as outras duas filhas seguiam no Rainha de Portugal. Ainda havia uma tia e uma cunhada de dom João, embarcadas no navio Príncipe do Brasil.
Navegação arriscada
No dia 8 de dezembro, perto da ilha da Madeira, uma violenta tempestade fez estragos consideráveis. Na esquadra portuguesa, mastros foram quebrados e velas, rasgadas. A péssima condição de visibilidade obrigou as embarcações a parar, sobretudo porque aquela era uma área de navegação arriscada, cheia de rochedos submersos.
A frota dispersou-se e uma parte dela seguiu direto para o Rio de Janeiro. Alguns navios britânicos já tinham voltado para a Europa, a fim de reforçar o cerco à Lisboa, invadida por tropas de Napoleão.
Quando as esquadras alcançaram a linha do equador, novo imprevisto: uma calmaria tornou a frear o avanço, submetendo passageiros a dias de sol escaldante. Casos de insolação e desidratação multiplicaram-se. Até que a calmaria se foi, a viagem seguiu e 1807 chegou ao fim – uma triste passagem de ano para a corte portuguesa.
Cajus e Pitangas
Depois de tanta carne seca e biscoito, imagine qual não foi a alegria de dom João e sua comitiva ao avistar, já bem perto da costa brasileira, um pequeno barco não identificado. Era o Três Corações, um bergantim enviado por Caetano Pinto de Miranda, então governador de Pernambuco, para dar as boas-vindas à Coroa portuguesa.
Dentro dele, um carregamento de frutas tropicais, como cajus e pitangas, e muitos recipientes com refresco. Aquele certamente foi um momento de glória – dom João e seus asseclas tirariam a barriga da miséria.
Àquela altura, o príncipe regente já havia determinado que o destino da frota seria Salvador, e não o Rio de Janeiro. Em 23 de janeiro de 1808, 55 longos dias depois de zarpar de Lisboa, a comitiva finalmente desembarcou na Bahia, para uma escala que duraria pouco mais de um mês.
Estavam todos cansados e debilitados. Mas o primeiro desafio tinha sido superado: o oceano Atlântico, agora, protegeria a corte da fúria de Napoleão.
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