HIPÁCIA DE ALEXANDRIA, A MÁRTIR DA CIÊNCIA
Uma das mentes mais brilhantes da Antiguidade, a cientista pagã foi linchada até a morte, acusada de bruxaria pelos cristãos. Era um prenúncio das atrocidades que se seguiriam
DIMALICE NUNES PUBLICADO EM 06/09/2019.
Na virada entre os séculos 4 e 5, a ascensão do cristianismo ganhava contornos de violência e intolerância. Em março de 415, Hipácia, filósofa, matemática e diretora do Museu de Alexandria, no Egito, é arrancada de sua carruagem e despida à força, acusada de bruxaria. Então descarnada viva por uma turba de monges cristãos enfurecidos, munidos de conchas de ostras. Esquartejada, pedaços de seu corpo são queimados em uma pira, como em um ritual de purificação.
Seus pecados? Nenhum. Era uma celibatária, que rejeitara diversas propostas de casamento. Imensamente respeitada, havia sido mestra de muitos cristãos, na camada mais poderosa da população.
Mas, para quem estava na turba, era uma bruxa pagã, cujos feitiços satânicos estavam impedindo que Orestes, seu ex-aluno, amigo e prefeito de Alexandria, se entendesse com o bispo da cidade, Cirilo, a quem eles se dedicavam fanaticamente.
Para os que a atacavam, "ser mulher já a desqualificava para atividades públicas, principalmente para ensinar a homens", explica Fernanda Lemos de Lima, professora de letras clássicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria. "Além disso, ela é uma figura que não se curva às mudanças do tempo e se mantém firme em suas convicções, muito mais filosóficas que religiosas."
Hipácia morria como um bode expiatório numa disputa sobre o futuro do cristianismo. Entre uma versão tolerante e o lado que venceu.
Uma formação sólida.
Nascida em 370 - ou 355, a data é incerta -, em uma família de prestígio em Alexandria, que, havia séculos, era o centro cultural do mundo ocidental. Hipácia era pagã. O fato de ser filha do matemático e astrônomo Téon é um dado fundamental para que sua biografia divirja da de outras mulheres de seu tempo. Não se sabe quem era sua mãe, e o próprio Téon a teria iniciado nos estudos. Seria parceira do pai e, talvez, até autora de alguns dos trabalhos atribuídos a ele.
Na adolescência, Hipácia foi a Atenas para concluir sua formação na Academia Neoplatônica, onde ganhou certa notoriedade ao unir a matemática do algebrista Diofanto ao neoplatonismo de Plotino. De volta, aos 30 anos já era diretora da Academia de Alexandria. "Ela segue os passos do pai e o supera no aprofundamento de seus estudos, algo que seria considerado comum para um homem.
A grande questão é o fato de tudo isso ocorrer com uma mulher", ressalta Fernanda. Os ensinamentos da filósofa incluíam como projetar um astrolábio, que permitia a alguém descobrir a latitude de sua posição na Terra observando as estrelas, um instrumento que seria crucial na era das Grandes Navegações.
Hipácia também logo ganhou fama como pensadora da Escola Neoplatônica de Alexandria. Muitos de seus alunos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida, eram cristãos. Religião não era um empecilho entre eles e a professora.
Não era assim que o bispo de Alexandria, Cirilo - que entraria para a tradição católica como São Cirilo - encarava a filósofa. Sobrinho de Teófilo, arcebispo que comandou a destruição da Biblioteca de Alexandria, sucedeu o tio após sua morte, em 412. Logo se estabeleceu uma disputa entre o religioso e Orestes - o já citado prefeito cristão de Alexandria - pelo controle da cidade. Orestes havia se convertido adulto, mas, mesmo com isso, não estava disposto a fazer concessões à Igreja.
O auge das animosidades se deu em 413, após o assassinato de um grupo de cristãos por extremistas judeus, o que serviria de pretexto para Cirilo expulsar todos os judeus de Alexandria. Isso teria deixado Orestes furioso, a ponto de ele encaminhar seus protestos ao imperador em Constantinopla. Todas as tentativas de conciliação entre o líder religioso e o líder político foram em vão.
Convencido de que boa parte da força do prefeito estava na amiga Hipácia, Cirilo fez com que seus seguidores espalhassem boatos de que a filósofa era uma bruxa no comando de magia negra para dominar Orestes. "Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos tinham altos cargos, tanto em Alexandria como fora", diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides.
De acordo com a historiadora Maria Dzielska, em Hipatia de Alexandria, as histórias sobre bruxaria não passavam de boato: "Em seu círculo não se utilizam métodos mágicos para entender a natureza do mundo; não há menção de que se ofereçam sacrifícios aos deuses, nem de que se utilizem objetos de culto".
Mas a influência de Cirilo foi suficiente para que a mentira se espalhasse entre os monges parabolanos, ordem responsável por enterrar os mortos. Seriam eles seus algozes.
Nada se sabe sobre Orestes após a morte de Hipácia. É provável que ele tenha fugido, deixando a cidade sob o poder de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita além do cristianismo em sua versão favorita. Ele esteve à frente da igreja local por mais de 20 anos e foi canonizado como São Cirilo de Alexandria.
As cartas que o então aluno Sinésio enviou a Hipácia e outros de seus discípulos são os principais registros sobre a filósofa. Sua vida é vestigial, como define a professora do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília Loraine Oliveira, no artigo Vestígios da Vida de Hipácia de Alexandria.
"De tudo o que supostamente escreveu, restam apenas poucas informações sobre seus tratados matemáticos. A partir de dados oferecidos pelos autores antigos, percebe-se que o fato de ser mulher, em Alexandria, naqueles tempos, foi determinante para atrair o ódio de certos cristãos."
Rara exceção.
Para entender de que forma algo como Hipácia foi possível, é preciso compreender Alexandria. Desde o século 4 a.C., quando Atenas perdeu sua independência, ela havia se tornado o grande centro de estudos do mundo helenístico. Lá estava a famosa biblioteca, também um centro de estudos, o Mouseion, a primeira instituição de ensino superior.
Entre sábios e pesquisadores, a voz de Hipácia era feminina. Mas, ao menos enquanto viveu, nem por isso menos ouvida.
As coisas haviam mudado desde a época de Sócrates, 800 anos antes. "Embora Hipácia tenha sido uma exceção, é uma exceção que jamais poderia ter ocorrido, por exemplo, na altamente patriarcal Atenas do século 5 a.C.", explica a pesquisadora Fernanda de Lima.
De acordo com ela Hipácia, foi ponto fora da curva na vida intelectual. Mas não necessariamente no ambiente político de Alexandria, e, menos ainda, no egípcio, um lugar no qual uma mulher podia, legalmente, se tornar gestora de sua casa se o marido se mostrasse omisso ou irresponsável.
Também fundamental é o fato de Hipácia não agir de forma subalterna, algo que incomodou seus opositores político-religiosos.
Afinal, à mulher, dentro das concepções judaicas e cristãs, não é facultado o espaço público, muito menos o direito à fala nesse espaço. Como diz Loraine Oliveira, o caráter público do ensino da filósofa - além de estar na Academia de Alexandria, as palestras públicas de Hipácia atraíam a atenção popular - é ponto de turbulência diante da ascensão de um pensamento mais patriarcal, de controle do comportamento feminino.
Os bispos ortodoxos daquele momento inquietavam-se diante da autoridade pública de algumas mulheres. A estrutura da Igreja nos séculos 4 e 5 instigava a exclusão delas e dava o poder a homens adultos e livres.
Símbolo eterno.
Diante de tudo isso, a história de Hipácia seria contada por homens. O historiador Sócrates, o Escolástico, escreveria ainda no século 5: "Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Téon, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época ". Já no século 7, o bispo cristão João de Nikiu tomaria outra posição: "(...) ela era devota a todas as sortes de magia (...) iludiu muita gente através de truques satânicos".
Hipácia voltaria à cena em outros momentos, como no século 18, em discussões sobre se Cirilo teria sido mesmo o mentor de sua morte. O iluminista irlandês John Toland (1670-1722) afirmou que a parte masculina da humanidade estava desgraçada para sempre pelo assassinato da "encarnação da beleza e da sabedoria". O clérigo inglês Thomas Lewis respondeu com o palavroso libelo A História de Hipácia, A Mais Impudente Amante da Escola de Alexandria. Em Defesa de São Cirilo e do Clero de Alexandria das Aspersões do Sr. Toland.
O famoso iluminista Voltaire citou Hipácia em seu Dicionário Filosófico: "Ela ensinou Homero e Platão em Alexandria (...). São Cirilo incitou a população cristã contra ela".
Para a professora Fernanda de Lima, a história de Hipácia torna-se um símbolo interessante para o pensamento iluminista "na medida em que combate a ideia da cegueira religiosa, indicando como a mesma pode ser tão violenta a ponto de matar uma figura de saber, de luz intelectual".
Hipácia se tornou símbolo de um ponto de cisão histórica, a passagem da Idade Clássica - e um cristianismo perseguido e acanhado - para a Idade Média, quando a Igreja não só teria imenso poder político como monopolizaria a atividade intelectual. "Ela parece ter vivido no epicentro das disputas entre pagãos e cristãos, e as consequências disso resultaram em sua morte", resume Loraine Oliveira. Seu fim foi um ensaio para a caça às bruxas, cujo auge seria no século 17, depois da Renascença que tentou resgatar os valores da Antiguidade.
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