GENOCÍDIO ARMÊNIO: AS ATROCIDADES DO HOLOCAUSTO TURCO
Dois em cada três pereceram no extermínio nunca reconhecido pela Turquia
LEONARDO MOURÃO E ALEXANDRE RODRIGUES PUBLICADO EM 04/08/2019
Quem digitar “genocídio armênio” em um site de buscas na internet deve se preparar, antes de apertar a tecla enter, para encontrar imagens de uma violência e crueldade grotescas.
Os sites irão mostrar um inferno de horrores: pessoas mutiladas, crianças que são só pele e ossos agonizando, cabeças decapitadas e espetadas em pedaços de pau, filas intermináveis de mulheres e seus filhos fugindo a pé pelo deserto, corpos pendurados em forcas, pilhas gigantescas de cadáveres...
Seria desrespeitoso e historicamente incorreto comparar o genocídio sofrido pelos armênios com massacres cometidos contra outros povos ao longo do século passado. Mas a selvageria com que os turcos, em alguns momentos auxiliados pelos curdos, perseguiram e assassinaram os armênios surpreende até mesmo quem está familiarizado com a descrição de outros crimes contra a humanidade.
Por quase três décadas, de 1895 a 1922, episódios de perseguições, assassinatos em massa e deportações se sucederam em diferentes regiões da Turquia. Mas é a partir de 24 de abril de 1915 que teve início uma desenfreada matança que, em semanas, provocou a morte de 1,4 milhão dos 2,1 milhões de armênios, de acordo com dados do Patriarcado Armênio.
Jovens turcos
A matança dos armênios soa ainda mais absurda pelo fato de essa nacionalidade ser parte integrante do dia a dia do então Império Otomano, que englobava, além da Turquia e Armênia, partes do Líbano, Síria, Iraque e Palestina.
Embora tivessem seu próprio país, e alguns entre eles reivindicassem sua autonomia, há vários séculos os armênios viviam nas cidades do império. Eram funcionários públicos, professores, policiais, comerciantes, jornalistas, soldados do Exército, médicos, sapateiros, advogados, donas de casa e artistas, que dividiam sua vida diária com os vizinhos turcos.
Contra eles se ergueu principalmente o panturquismo, o nacionalismo radical defendido pelos Jovens Turcos, vertente política que havia tomado o poder no Império em 1908.
À frente do governo dos Jovens Turcos estavam três paxás. Entre eles, Mehmed Talaat Pasha foi o mais ativo idealizador e executor do genocídio. Foi ele, ainda no posto de ministro do Interior, quem ordenou, no fatídico 24 de abril de 1915, a prisão e a execução de 250 intelectuais e líderes armênios que viviam na então capital Constantinopla (a atual Istambul). Entre eles estava toda a redação do jornal Azadamart, o principal órgão de comunicação em língua armênia no império.
Cinco semanas depois, Talaat proporia a Lei de Deportação Temporária, que seria a luz verde para o grande genocídio que, de resto, já vinha sendo gestado desde outubro do ano anterior, quando os otomanos entraram em guerra contra a Rússia e perderam de maneira espetacular sua primeira batalha.
Como parte do povo armênio vivia em território russo, o governo dos Jovens Turcos colocou todos no mesmo saco e acusou os armênios de traírem a Turquia.
Tal argumento seria usado ao longo dos anos para justificar o genocídio como consequência dos combates da Primeira Guerra, e não uma matança planejada. Mas uma das provas apontadas pelos armênios de que em Constantinopla o genocídio fazia parte de um plano elaborado é “uma medida insólita” tomada pelo governo: todos os soldados e policiais armênios a serviço do império foram desarmados.
“As consequências dessa medida são fáceis de imaginar, procura-se prevenir assim qualquer resistência à execução que virá”, escreveu o teólogo brasileiro Aharon Sapsezian autor de História da Armênia – Drama e Esperança de uma Nação.
E o que veio foram ordens de Constantinopla, “seguindo um programa preciso”, conforme esclarece relatório elaborado pelo Tribunal Permanente dos Povos, de deportar os moradores das províncias da Armênia. Para onde? Não se sabia e não importava. Tinham de deixar o país.
A elaboração do plano ficou a cargo do Comitê União e Progresso, em Constantinopla, que fornecia armas, veículos e apoio à SO, ou organização especial, que executava as ordens. A SO tinha poderes para demitir os funcionários que não concordassem com as medidas contra os armênios.
Deportações
As ordens de deportação eram anunciadas publicamente, as famílias tinham dois dias para juntar seus pertences. Padres, políticos e jovens armênios eram obrigados a assinar confissões forjadas e em seguida executados.
Idosos, mulheres e crianças tinham, no início do genocídio, direito a serem transportados em comboios. Depois, atravessavam a pé o deserto da Mesopotâmia, onde é hoje o noroeste do Iraque. Há relatos de que barcos repletos de armênios eram afundados no Mar Negro e Rio Tigre.
Nas aldeias remotas, onde havia poucas testemunhas, foi muito pior. Mulheres eram estupradas, crianças, crucificadas e milhares enforcados ou decapitados por soldados do Exército, policiais e membros da SO. Com seus proprietários expulsos, as casas eram vendidas, os pertences saqueados. Outras vezes, queimavam-se as residências com os moradores dentro.
A caminho dos campos de concentração em Alepo, hoje cidade síria, mulheres e crianças andavam em fila e, ao seu lado, um soldado carregava objetos que lhes roubou. Não havia água ou comida para todos. Milhares andavam até cair e morrer magros como esqueletos. Raros são os descendentes de armênios que não tiveram bisavôs, avôs, pais ou mesmo irmãos assassinados.
A diáspora espalhou armênios por todo o Ocidente. O Brasil é um dos países que receberam grande número de imigrantes. “Sou filha da diáspora”, diz Sossi Amiralian, doutora em Literatura Armênia pela USP, nascida no Líbano, onde a família havia se refugiado.
“Meus pais viveram o genocídio de perto. Os dois perderam seus pais”, conta. O avô paterno de Sossi, Levon Amiralian, era influente na cidade de Marach. Pelo lado materno, Mardiros Kehiaian vivia em Adana. As duas cidades foram especialmente atingidas pelos genocidas. “Não conheci meus avós, foram decapitados quando meus pais ainda eram crianças.”
Joias costuradas
O pai de Sossi, Garabad, e a avó dela tiveram sorte, seu tio-avô tinha amizade com algumas autoridades turcas que se apiedaram da família e lhes providenciaram transporte seguro. Não fosse isso, afirma Sossi, não haveria como resistir aos turcos. “Os armênios não tinham armas; minha avó contava que para defender seus filhos deixava permanentemente uma panela de água fervente com pimenta sobre o fogão. Caso fosse atacada lançaria aquela mistura nos soldados.”
Outras mães não tiveram nem mesmo a oportunidade de tentar se defender. Flora Kuyumjian demorou décadas até conseguir contar para seus netos como foi o ataque à sua casa. Depois de agarrarem seu marido, Minas, e o levarem para fora, degolaram seus dois filhos diante dos seus olhos.
O bebê recém-nascido que estava em seus braços lhe foi tomado e afogado na bacia de água na qual lavava a roupa. “Ela levou um golpe no pescoço e desmaiou, quando acordou estava boiando no mar e foi recolhida por uma família de turcos que a tomaram como escrava, para cuidar da sua filha”, conta a diretora de arte Moema Kuyumjian, sua neta.
Flora não ficou mais do que dois dias junto com os seus algozes. Cristã convicta, como a grande maioria dos armênios, fugiu atormentada pela ideia obsessiva que vinha à sua cabeça de matar por vingança a criança sob os seus cuidados.
Se não tinha sobre o fogão uma panela de água fervente para defender-se contra seus agressores, Flora tomara outros cuidados para enfrentar aquele genocídio que se anunciava havia algum tempo. Na barra da sua saia, costurou as poucas joias que possuía. Foi com elas que subornou um soldado turco para chegar à Síria. Ali, mendigou e sobreviveu comendo restos de feira. Um dia encontrou-se por acaso com o marido, Minas, também vagando como pedinte.
Flora lembrava que seu sofrimento a havia feito tão dura que não chorou nem se emocionou. Com o tempo, tiveram outros dois filhos. “Ela os batizou Arthur e Eduardo, que foi o meu pai”, diz Moema. “Os mesmos nomes dos dois filhos assassinados pelos turcos.” Da Síria, Minas e Flora passaram ao Líbano, onde a família conseguiu passaportes. Vieram para o Brasil e se estabeleceram em São José do Rio Preto, São Paulo, em 1926.
Sem reconhecimento
Centenas de milhares de armênios não tiveram tanta “sorte” quanto os pais e avós de Sossi e Moema. Após o genocídio, na porção da Armênia em território turco quase já não havia mais armênios. Os que viviam no lado russo sofreram menos com os ataques. A derrota final na Primeira Guerra, em 1918, depôs o governo dos Jovens Turcos e desmantelou o Império Otomano. O Estado armênio seria reconhecido pela Turquia. Mas as matanças ainda se repetiriam até os primeiros anos da década de 20.
O governo turco tem dificuldade em admitir publicamente que houve, em 1915, um genocídio planejado e conduzido oficialmente, semelhante ao Holocausto que foi promovido pelo governo nazista alemão contra os judeus na Segunda Guerra.
Entre os argumentos oficiais está o de que o êxodo e a morte de centenas de milhares de armênios seria um efeito colateral das batalhas e da divisão europeia na Primeira Guerra. Os defensores de que de fato houve um genocídio liderado pelo governo do Império Otomano alegam, e divulgam, o conteúdo de comunicação do governo instruindo sobre como deveria ser feita a eliminação dos armênios.
Em seu História da Armênia, Aharon Sapsezian cita o livro Memórias, escrito pelo jornalista armênio Naim Bey, que, segundo Sapsezian, era o responsável por receber em Alepo seus compatriotas refugiados. O jornalista reproduz em seu livro, publicado em 1920, documentos oficiais que teriam sido enviados pelo ministro do Interior, Talaat Pasha, ao prefeito de Alepo.
Um deles: “O governo decidiu exterminar os armênios habitantes na Turquia. Aqueles que se opuserem a essa ordem e decisão não poderão integrar o quadro governamental. Sem nenhuma consideração, nem mesmo pelas crianças, mulheres ou pelos enfermos, por mais trágicos que sejam os meios de exterminação utilizados, e sem se deixar levar pelos apelos da consciência, é preciso pôr termo à sua existência”.
Saiba mais
História da Armênia - Drama e Esperança de uma Nação, Aharon Sapsezian, Paz e Terra
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