Criado por um ex-militar inglês, com técnicas de organização de quartel, o circo juntou profissões que entretiam a humanidade por milênios
TEXTO FELIPE VAN DEURSEN / ILUSTRAÇÕES HARE PUBLICADO EM 04/04/2019
As casas, em chamas, desmanchavam-se no chão e o som do fogo se misturava ao de tiros e gritos de mulheres. O galope sincopado na chuva aumentava a tensão. Em meio ao horror e à confusão, o temido Napoleão Bonaparte bradou de peito cheio a seus homens o orgulho de defender as cores da França, inflando-os de honra e orgulho. Após o inspirado discurso e pronto para montar no cavalo rumo a mais uma vitória, o imperador, com o olhar rígido, meteu o pé direito no estribo esquerdo, ficando de frente para o rabo do animal. Uma posição ridícula. Às gargalhadas, a plateia delirou.
Cenas grandiosas assim eram populares no circo do século 19. A palhaçada descrita acima, involuntária, foi feita por um artista que nunca havia subido no lombo de um cavalo e teve de substituir de última hora o colega que interpretava Napoleão no show As Glórias Militares. A exibição era um dos maiores sucessos do circo do veneziano Antoine Franconi na década de 1860. A dramatização, com mais de 600 pessoas no elenco, encantou públicos em Paris, Londres e Washington – com palhaçadas incorporadas ao espetáculo.
Franconi foi um dos grandes nomes do circo. Mas ele mesmo apenas deu continuidade ao trabalho iniciado no século 18 por seu ex-patrão, Philip Astley – este, sim, considerado o pai do circo moderno. Ex-integrante da cavalaria do Exército inglês, onde chegou a assumir o posto de sargento-major, Astley aplicou as rígidas regras do quartel a seu novo negócio, inventou o picadeiro e juntou nele números com seus cavalos, palhaços, malabaristas e outros artistas que costumavam se apresentar nas feiras das cidades para ganhar a vida.
Acrobacia olímpica
As diversas atividades que compõem hoje o que chamamos de circo não tem um só local e data de nascimento. “Não existe um circo único. Ele foi e sempre será uma arte de múltiplas origens e influências, presente em quase todas as culturas”, diz Marco Antonio Bortoleto, doutor em Educação Física e pesquisador de artes circenses da Universidade Estadual de Campinas. Na Grécia, acrobatas se apresentavam nas Olimpíadas da Antiguidade e há registros de jogos semelhantes ao malabarismo praticados no Egito antigo.
Em Roma, havia espetáculos públicos com diversas atrações, como teatro, lutas de gladiadores, exibições de animais exóticos e corridas de bigas no gigantesco estádio Circo Máximo – aliás, o termo “circo” é latino, numa referência ao formato circular do estádio. Anfiteatros, como o Coliseu, construído no século 1, foram erguidos para eventos assim. “Em geral, os espetáculos eram oferecidos por cidadãos ricos em homenagem a mortos importantes, vitórias militares ou em honra aos deuses”, afirma Renata Garraffoni, historiadora da Universidade Federal do Paraná.
Trezentos anos antes, na China, artistas que se contorciam e se equilibravam sobre cordas já entretinham imperadores e visitantes estrangeiros. Com o fim do Império Romano e o início da Idade Média, no século 5, trupes de mímicos, ventríloquos, ilusionistas e equilibristas, entre outros, começaram a se apresentar em feiras e praças pela Europa. Pulavam de cidade em cidade, sobrevivendo de contribuições espontâneas. Só no século 18 é que organizadores de espetáculos perceberam que as pessoas pagariam para assistir a esses artistas do povo. Alguns palcos com entrada paga foram abertos no continente. Foi nessa época que Philip Astley teve sua grande sacada.
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