FANTASMAS DO ÓDIO: A HISTÓRIA DA KU KLUX KLAN
Organização símbolo do racismo passou por várias encarnações e seus vestígios ainda estão presentes na sociedade
FERNANDO DUARTE E FÁBIO MARTON PUBLICADO EM 29/04/2019
A velha guarda do supremacismo branco dos EUA pode estar perdendo força para novos grupos pela internet, mas mantém seu status como a pioneira, conectando por mais de um século o legado sulista ao ódio racial. E não pôde faltar à manifestação de sábado passado em Charlottesville que terminou em tragédia.
Durante toda sua história, a Ku Klux Klan simbolizou duas coisas: primeiro, e obviamente, as feridas profundas da Guerra Civil, o rancor imenso dos brancos do Sul aos negros que foram "privilegiados" por Abraham Lincoln. Segundo, a força da Primeira Emenda da constituição americana: que uma sociedade como uma mensagem de ódio tão clara tenha sobrevivido até hoje é o testamento do compromisso absoluto com a liberdade de expressão, como em nenhum outro lugar do mundo. Vejamos por quê.
O Sul não se conforma.
A Klan nasceu como um subproduto da Guerra Civil americana, iniciada pelos estados do sul do país, inconformados com o fim da escravidão. A luta durou quatro anos, entre 1861 e 1865, e terminou com a vitória da União sobre os insurgentes, 625 mil mortos e uma imensa região destruída, com a economia estagnada e condenada à pobreza por falta de um modelo de desenvolvimento que pudesse substituir rapidamente a mão de obra escrava.
Em 1866, seis oficiais do antigo Exército Confederado fundaram um clube social em Pulaski, no Tennessee - Ku Klux é uma corruptela do grego kuklos, círculo. No ano seguinte, o grupo foi organizado como "O Império Invisível do Sul" durante uma convenção em Nashville. A organização passou a ser presidida por um "grande mago", o general confederado Nathan Bedford Forrest, um brilhante oficial da cavalaria durante a guerra - e famoso pelo ódio que nutria aos negros e aos colaboradores sulistas do Exército do Norte.
A irmandade teria como principal função a manutenção da supremacia dos brancos - especialmente depois de uma guerra em que os escravos dos antigos senhores eram agora homens livres, capazes de se organizar. Ou seja, os "novos inimigos" precisavam ser combatidos, ainda que pela intimidação e violência.
Os historiadores se dividem sobre a natureza da KKK. Para alguns, o grupo foi fruto da nostalgia de uma enorme população de veteranos de guerra - o que explica sua pesada hierarquia interna (abaixo do grande mago vêm os grandes dragões, grandes titãs e grandes cíclopes). Para outros, a Klan nasceu com políticas e objetivos bem definidos. Seria a resistência clandestina branca contra o governo do norte e sua Reconstrução Radical - que previa a divisão do sul em cinco distritos militares e eleições multirraciais.
Na prática, a Klan atuava como uma gangue de vigilantes, defendendo as propriedades dos brancos. E não era a única no período. Uma organização parecida surgiu no mesmo ano, na Louisiana: os Cavaleiros da Camélia Branca. Parte do pavor que a KKK espalhava pela região era devido ao seu figurino. Capuzes e camisolões brancos tinham duas funções: assustar negros supersticiosos e evitar a identificação dos membros pelas tropas federais que coalhavam a região. Em pouco tempo, o que era um grupo de vigia passou a promover ataques noturnos para matar negros libertos e seus apoiadores brancos. De um ex-general confederado, surgiu o Prescript, o estatuto da KKK. Além do óbvio elemento racista, o documento pregava a resistência contra algumas das práticas impostas pelo lado vencedor da Guerra Civil, como o de negar direito de voto para pessoas que se recusassem a jurar não ter lutado contra as tropas do Norte.
Mais do que apenas minorias raciais, seus milicianos atacavam políticos, a mando do Partido Democrata, que usava as turbas para tumultuar eleições e até assassinar adversários. Só que a proliferação de células acabou se transformando em embaraço até para os patrocinadores da KKK: as arruaças serviam para aumentar o controle do governo federal sobre o sul. Em 1869, o general Forrest ordenou que o grupo fosse desmantelado. O surgimento de milícias rivais forçou diversos estados a adotar legislação proibindo as atividades da Klan. Incluindo o Ato de Direitos Civis de 1871, que deu ao governo poderes para intervir militarmente em localidades onde a KKK se recusasse a depor armas - revogando o habeas corpus e impondo pesadas penalidades para organizações terroristas. Foi o fim da primeira Ku Klux Klan.
Sim, o Partido Democrata, o de Hillary e Obama, não Bush e Trump. Para quem acompanha a política americana, deve soar esquisito que o atual partido da esquerda tenha sido amigo da KKK e do racismo em geral. Isso porque os dois partidos trocaram de posição. Na época de Lincoln, o Republicano, ao qual pertencia, representava as cidades industrializadas do Norte - e seu sentimento abolicionista. O Democrata tinha sua base eleitoral no Sul escravocrata. Tudo isso mudou com a eleição do democrata Franklin Delano Roosevelt, em 1936. Para resgatar o país da Grande Depressão, ele implementou uma plataforma social-democrata, o New Deal. Restou ao Partido Republicano ganhar os descontentes, movendo-se para o conservadorismo - principalmente a partir do final dos anos 1950, durante o movimento para o banimento das leis de segregação, quando o eleitorado racista sentiu-se órfão.
A segunda KKK.
Depois de 1871, a KKK parecia morta. A repressão do governo havia funcionado. Em 1882, a Suprema Corte declarou o grupo inconstitucional - e na época a Klan praticamente havia desaparecido. Para alguns historiadores, o fim da primeira Klan deveu-se ao sucesso de seu objetivo: restaurar a supremacia branca nos estados do sul dos EUA. De fato, Carolina do Norte, Tennessee e Geórgia eram governados por simpatizantes da tal supremacia.
Mas os EUA estavam mudando. O ódio aos negros rapidamente encontrou outro alvos. O ressurgimento veio com a chegada de imigrantes europeus a partir do final do século 19, especialmente os católicos e judeus. Havia também o momento populacional interno, com o deslocamento de populações negras para áreas predominantemente brancas do Meio-Oeste. Em 1915, perto de Atlanta, na Geórgia, o coronel e pastor metodista William Simmons lançou as bases da segunda geração da KKK, inspirado pelo livro The Clansman (o homem do clã), de Thomas Dixon, publicado dez anos antes, e no extraordinário sucesso do filme O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, baseado no livro. O grupo permaneceu pequeno, mas com uma agenda de ódio mais abrangente - que incluía xenofobia e antissemitismo -, e progredia baseado na defesa do patriotismo e de um modo de vida protestante e branco típico das pequenas cidades americanas.
No cenário internacional, um novo elemento funcionou como combustível: a ascensão dos comunistas na Rússia e o crescimento do movimento sindical. Na década de 20, os membros da KKK passavam de 4 milhões. Ao contrário de 1865, a organização se expandiu geograficamente, chegando a regiões que sofriam as pressões sociais da industrialização. Em Detroit, cujo clima e cotidiano não poderiam ser mais diferentes que o dos estados do sul, arrebanhou 40 mil afiliados. A diferença de popularidade em relação ao passado era clara: a agenda da segunda encarnação da Klan tinha um apelo muito mais generalizado. "Estamos falando do auge da KKK, em que ela se torna uma espécie de grupo de apoio numa era em que não existia previdência social, por exemplo. E não eram apenas fazendeiros ou trabalhadores braçais que se assustavam com questões de imigração e de mudanças nos modos tradicionais de vida", diz Thomas Pegram, historiador e autor de One Hundred Per Cent American (Cem por Cento Americano), um estudo sobre a segunda encarnação da KKK. "Profissionais liberais também se juntaram às fileiras da Klan. A população americana na época era de quase 100 milhões, então perto de 5% fazia parte do grupo."
Massificada e com presença em círculos mais altos da sociedade, a Klan pôde exercer influência política. Elegeu xerifes, juízes, deputados e senadores. "A KKK era interessante o suficiente para o eleitorado americano. Mas os políticos que elegia eram amadores e nunca fizeram frente à turma mais experiente. Essas ambições políticas acabariam justamente criando problemas de popularidade para a Klan, pois seus candidatos acabavam parecendo pior que os políticos profissionais aos olhos do público", afirma Pegram. O caráter religioso fez ainda com que as milícias da KKK tivessem papel preponderante nos anos da Lei Seca nos EUA (entre 1920 e 1933, a fabricação e a comercialização de álcool foram proibidas no país), atuando como poder paralelo na repressão, não raramente usando a violência.
A decadência.
O declínio começou quando os opositores da KKK passaram a se organizar. Grupos de pressão como a Liga Antidifamação, um poderoso lobby de defesa dos judeus, engrossaram um coro de protestos que ajudou a marginalizar a Klan. A Grande Depressão dos anos 30 também afastou gente de suas fileiras. Divisões internas e escândalos, como casos de corrupção e até uma condenação por assassinato de um líder no estado de Indiana, minaram o apoio popular. Um resultado imediato foi a fragmentação e radicalização do movimento. Grupos passaram a agir de forma independente e, de linchamentos, passaram ao terrorismo escancarado. Em Birmingham, uma das mais importantes cidades do Alabama, ataques com bombas incendiárias a residências de negros nos anos 50 eram tão constantes que a cidade ganhou o apelido de "Bombingham". O terror acabou criando a própria derrocada da Klan. Em 1963, um atentado a bomba a uma igreja batista do Alabama matou quatro crianças e chocou o país. O então presidente Lyndon Johnson assinou o Decreto dos Direitos Civis de 1964, um marco na história das relações raciais e da democracia nos Estados Unidos.
Ainda nos anos 60, o surgimento do Movimento pelos Direitos Civis e a mobilização pelo fim da segregação racial nos EUA (negros, por exemplo, só tiveram direito universal de voto a partir de 1965) também foram fatores que ativaram a terceira encarnação da Klan. Ativistas que vinham dos estados do norte eram alvos preferenciais da organização, e as investigações do FBI sobre diversos incidentes no sul dos EUA durante a década de 60 serviram de pano de fundo para o filme Mississippi em Chamas. Quando o governo enfim aprovou a legislação de igualdade racial, também foi restaurado um ato especial que serviu para coibir as ações da KKK no século 19 - e os ataques começaram a ficar cada vez mais isolados, embora linchamentos, por exemplo, tenham ocorrido até 1981. A Klan era uma entidade anacrônica, que sobrevivia em pequenas comunidades atrasadas nas regiões mais pobres dos EUA. Era essa a "supremacia branca"?
Racismo digital.
O mundo dá voltas. Durante a administração Obama, em 2012, um pedido de apelação foi impetrado pela Ku Klux Klan no estado da Geórgia contra a decisão do Departamento de Transportes local de negar a participação do grupo no "Adote uma Rodovia", programa em que diversas organizações ao redor do país custeiam ou promovem mutirões para a limpeza de trechos de estrada. O caso chamou a atenção não só pelo envolvimento de uma das mais temidas e notórias associações extremistas da história americana, mas pelo que soou como uma tentativa de jogada de marketing, incluindo um certo tom de desespero - algo patético.
A KKK havia desaparecido do noticiário até bem pouco tempo atrás. Foi quando declarou seu apoio à candidatura de Donald Trump, celebrou sua vitória com saudações nazistas e se mostrou exultante com seus primeiros dias de governo. Uma entidade quase nostálgica diante da onda de nacionalismo branco atuando por sites de memes, noticiário alternativo e seções obscuras de fóruns populares, congregados em torno da campanha do, para dizer o mínimo, controverso presidente. O ódio tornou-se viral.
Trump, por seu turno, foi visto como racista pela oposição, que exigiu que ele rejeitasse esse apoio - o que fez, se algo timidamente. O mundo espera que ele acabe por frustrar essa ala de sua torcida.
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