ATENAS: O BERÇO DO OCIDENTE
Democracia, imperialismo, educação, arte e até malhação: as raízes do nosso mundo surgiram na cidade mais poderosa da Grécia antiga
REINALDO JOSÉ LOPES PUBLICADO EM 09/04/2019
É a festa da democracia em Atenas e todos os cidadãos, dos magnatas aos mais humildes, foram convidados. Quem passa pela ágora, a praça do mercado, logo vê os dez portões pelos quais entram os que vão votar. É dia de eleição e há um clima de ansiedade no ar: o cidadão que receber 6 mil votos ou mais será expulso sumariamente da cidade e do território em torno controlado por ela, por dez anos. Trata-se de um pleito de ostracismo. Os eleitores só precisam rabiscar o nome do "candidato" ao exílio num caco de cerâmica, o chamado ôstrakon (ou ôstraka, no plural), e depositá-lo num grande jarro. Um grupo de camponeses hesita perto dos portões: entrar ou não entrar? Eles não sabem escrever e estão inseguros, mas um homem de túnica elegante se aproxima para dar uma mãozinha.
"Percebo que os senhores têm dificuldade com a escrita e seria uma injustiça não poderem participar. Eis aqui alguns votos já prontos", diz, enquanto oferece a eles as cédulas em que, maliciosamente, inscreveu, provavelmente, o nome do seu inimigo. Agradecidos, os camponeses já podem votar. A cena fictícia se passa na Atenas de 2500 anos atrás. Mas qualquer semelhança com o conhecido voto de cabresto, flagelo da democracia contemporânea, não é mera coincidência. Muito do pensamento e da vida do Ocidente, no século 21, foi antecipado pelos gregos, em especial pelos atenienses do século 5 a.C.
A lista é comprida. Além do sistema de participação política (com seus méritos e problemas), Atenas criou um modelo educacional voltado para a cidadania, levou para o teatro os dilemas existenciais da humanidade, aperfeiçoou a filosofia e a retórica, elevou o culto do corpo ao status de arte, integrou os relacionamentos homossexuais à sociedade com pouco ou nenhum preconceito. Também estava lá a mistura contemporânea de democracia com imperialismo, muitas vezes associada aos Estados Unidos, em que a ideia da liberdade vale muito internamente, mas pouco na política externa e no trato com os vizinhos.
Liberdade, liberdade
O grande sucesso da democracia ateniense, que acabou por transformá-la num império marítimo, é resultado direto da surra que as cidades-estado helênicas deram nos persas, quando eles invadiram a Grécia em 480 a.C. Uma das chaves da vitória foram os 200 navios de Atenas. "E esses navios eram remados justamente pela classe mais baixa entre os cidadãos atenienses, os chamados tetes", explica o historiador britânico Robin Waterfield, autor de Athens - A History ("Atenas - Uma História", inédito no Brasil). Nessa época, o governo da cidade já era democrático: as decisões relevantes para a sociedade eram tomadas por maioria simples da Assembleia, onde qualquer homem livre ateniense poderia participar diretamente, votando.
Mas nem todos eram iguais, distribuídos já em classes de acordo com sua riqueza. E a crescente influência exercida pelos integrantes da Marinha fez com que o equilíbrio de poder dependesse cada vez mais dos que a tripulavam. Durante muito tempo, os membros da nobreza foram as principais figuras da política ateniense, mas a vitória contra o rei persa Xerxes levou esses líderes a fazer de tudo para agradar os tetes, trabalhadores assalariados. É que as naus de Atenas, movidas por eles, também libertaram dos persas as cidades gregas da Ásia, que imploraram para se tornarem aliadas e protegidas dessa frota imbatível na guerra e no comércio marítimo. Formaram, assim, a Liga de Delos.
Mas nem todos eram iguais, distribuídos já em classes de acordo com sua riqueza. E a crescente influência exercida pelos integrantes da Marinha fez com que o equilíbrio de poder dependesse cada vez mais dos que a tripulavam. Durante muito tempo, os membros da nobreza foram as principais figuras da política ateniense, mas a vitória contra o rei persa Xerxes levou esses líderes a fazer de tudo para agradar os tetes, trabalhadores assalariados. É que as naus de Atenas, movidas por eles, também libertaram dos persas as cidades gregas da Ásia, que imploraram para se tornarem aliadas e protegidas dessa frota imbatível na guerra e no comércio marítimo. Formaram, assim, a Liga de Delos.
Os membros dessa aliança contribuíam, inicialmente, com navios e soldados, e depois com dinheiro para as forças armadas comuns. Não demorou, Atenas começou a desviar esses fundos para a construção de templos e para enriquecer seus cidadãos. "Além disso, os atenienses interferiam na política interna dos seus aliados, favorecendo governos simpáticos aos seus interesses e, às vezes, instalando guarnições militares nas terras aliadas", diz Waterfield. A aliança deu lugar a um imenso império, que justificava a força para "defender" a democracia em território alheio. Os lucros para Atenas e as vantagens políticas para os tetes, antes marginalizados, eram tão grandes que poucos se incomodavam com o contraste entre a valorização da democracia em casa e o uso de mão de ferro fora dela.
Política de sorte
À parte essa contradição na política externa, o fato é que, em seu auge, a partir da segunda metade do século 5 a.C., o governo democrático ateniense foi um dos mais radicais da História. "As pessoas usam o fato de que os escravos, as mulheres e os estrangeiros não tinham direitos políticos em Atenas para dizer que a democracia da cidade não era lá essas coisas, mas esquecem que nenhum governo constitucional deu direitos a esses grupos até o século 19", lembra Donald Kagan, professor de História e Estudos Clássicos da Universidade Yale (EUA). "Sob todos os aspectos, a democracia grega colocava o poder diretamente nas mãos dos cidadãos, de uma maneira que nós, que vivemos em democracias modernas, temos até dificuldade de imaginar", diz ele.
Para começar, quase não existiam eleições para cargos públicos em Atenas. A maioria era ocupada por sorteio. A ideia é que as votações favorecem pessoas influentes e ricas, com recursos para fazer campanha. A sorte seria, então, mais democrática. Conceito parecido está por trás da invenção do ostracismo. Trata-se de um instrumento para punir qualquer cidadão acusado de querer tomar o poder. É claro que alguns tentavam manipular o sistema: a cena inicial deste texto foi inspirada na descoberta real de centenas de ôstraka, ou votos de ostracismo, que pediam o exílio da mesma pessoa, escritos por poucas mãos - indício de grupos se organizando para "queimar" inimigos políticos.
Para começar, quase não existiam eleições para cargos públicos em Atenas. A maioria era ocupada por sorteio. A ideia é que as votações favorecem pessoas influentes e ricas, com recursos para fazer campanha. A sorte seria, então, mais democrática. Conceito parecido está por trás da invenção do ostracismo. Trata-se de um instrumento para punir qualquer cidadão acusado de querer tomar o poder. É claro que alguns tentavam manipular o sistema: a cena inicial deste texto foi inspirada na descoberta real de centenas de ôstraka, ou votos de ostracismo, que pediam o exílio da mesma pessoa, escritos por poucas mãos - indício de grupos se organizando para "queimar" inimigos políticos.
Nessa época, o único cargo eletivo era o de estratego, ou general (reelegível, após um ano, indefinidamente). De resto, os mandatos duravam um ano, sem direito à reeleição (novo sorteio), o que conferia alta rotatividade aos cargos. Não havia burocracia estatal em Atenas. Até os juízes eram selecionados aleatoriamente. Mas, se todos podiam votar, nem todos podiam ser votados. Só podiam ser escolhidos para todos os cargos os mais ricos, em geral donos de terras, chamados pentacosiomedimnos, seguidos pelos cavaleiros e pelos zeugitas (comparáveis a uma "classe média"). "Temia-se que os tetes, por serem muito pobres, viessem a aceitar subornos", diz Waterfield.
Mas os órgãos que realmente mandavam eram o Conselho, formado por 500 cidadãos sorteados (inclusive entre a classe pobre), e a Assembleia, da qual todo cidadão (homem, filho de pai e mãe atenienses, com mais de 18 anos) era membro permanente. Até as decisões dos generais passavam por ela. O Conselho preparava a legislação a ser submetida à Assembleia, que era soberana para vetar a medida ou pedir modificações. "Como muitos dos cerca de 40 mil cidadãos atenienses viviam na zona rural e não eram ricos para possuir cavalos, entre 5 mil e 6 mil pessoas compareciam a uma Assembleia", diz Kagan. O quórum necessário para tomar decisões mais sérias, como declarações de guerra, era de 6 mil votos.
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