terça-feira, 13 de novembro de 2018

Revolta da Vacina: a guerra contra a agulha.

REVOLTA DA VACINA: A GUERRA CONTRA A AGULHA

Neste dia, em 1904, a ignorância e os velhos pudores levaram à uma explosão de violência no Rio
CARLA ARANHA PUBLICADO EM 13/11/2018
Representação da Revolta da Vacina
Representação da Revolta da Vacina - Wikimedia Commons
Havia alguma coisa diferente no ar naquela manha abafada e úmida de 13 de novembro. Nos últimos dias, boatos haviam tomado os bares, as conversas em família depois que estudantes e operários saíram em passeata pelo centro do Rio de Janeiro, gritando palavras de ordem e protestando contra o governo do presidente Rodrigues Alves. Mas nem quem acompanhava de perto as notícias podia prever os acontecimentos que se seguiriam. De repente, sem que parecesse haver qualquer organização, grupos de pessoas começaram a chegar ao centro.
Tomaram as ruas do Ouvidor, da Quitanda, da Assembleia e, quando chegaram à praça Tiradentes, já eram milhares. "Abaixo a vacina", gritavam. O comércio baixou as portas e a polícia chegou. A multidão respondeu em coro: "Morra a polícia". Houve tiros. Correria. O centro virou campo de batalha. No meio de cacetadas, tiros e pernadas, talvez ninguém "do lado dos manifestantes ou dos homens da lei " se lembrasse de como aquilo havia começado.

CIDADE INSALUBRE

A cidade do Rio não tinha nada de maravilhosa. Entre 1872 e 1890, a população passou de 266 mil para 522 mil pessoas. Não havia emprego para todos e a maioria se virava como podia: carregava e descarregava navios, vendia tranqueiras, fazia pequenos serviços. É claro que ainda havia entre eles ladrões, prostitutas e trambiqueiros.
O cortiço Cabeça de Porco Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Os pobres moravam em cortiços. O mais famoso deles, o Cabeça de Porco, no número 154 da rua Barão de São Félix, chegou a ter 4 mil moradores. "As autoridades consideravam os cortiços antros de doenças e de pouca-vergonha. Para a mentalidade da época, que aliás não mudou muito, as moradias pobres abrigavam as classes perigosas, sujas, de onde saíam as epidemias e toda sorte de ruindade", diz o historiador Sidney Chalhoub, da Unicamp, autor de Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial.
Tanta gente concentrada em condições miseráveis era um berçário de doenças. E a situação tinha consequências drásticas que iam além da saúde pública. Por causa da imagem de ser reduto de doenças, navios estrangeiros se recusavam a aportar no Brasil. E a fama não era injustificada: em 1895, o navio italiano Lombardia, atracado no Rio, perdeu 234 de seus 340 tripulantes, vítimas de febre amarela. Companhias europeias faziam questão de anunciar viagens diretas à Argentina, garantindo aos interessados que seus navios passariam ao largo da costa brasileira. Uma tragédia para um país que vivia da exportação.
Quando Rodrigues Alves assumiu a presidência em 1902, prometendo trazer o país para o novo século, viu naqueles cortiços um obstáculo a ser removido. Inspirados nas recentes reformas de Paris, sob a tutela do Barão Hausmann, os cortiços teriam que sair, as avenidas, entrar.  

MEDO DE INJEÇÃO

Mas, para combater as doenças que abatiam os cariocas, não bastariam as reformas urbanas no centro da cidade. Mais uma vez apoiando-se no exemplo francês, o governo brasileiro apostou nas técnicas de saúde pública que estavam sendo colocadas em prática por médicos como Louis Pasteur. Para apoia-lo nessa área, Rodrigues Alves convocou um jovem médico do interior de São Paulo que acabara de estagiar em Paris, Oswaldo Cruz. 
Assim que assumiu a diretoria de Saúde Pública, em 1903, Oswaldo encarou batalhas contra a peste bubônica e formou brigadas sanitárias que saíram pelo centro da cidade caçando ratos pelas casas e ruas. Chegou a adotar o método pouco ortodoxo de comprar ratos, para estimular a população a caçar o roedor. Apesar das inevitáveis fraudes, houve gente que foi presa por criar ratos para vender às autoridades, a campanha contra a peste foi um sucesso.
Para enfrentar a febre amarela, no entanto, Oswaldo encontrou oposição. Nem o combate aos mosquitos era consenso. Na época, não se sabia que a doença era causada por um vírus nem se conhecia seu mecanismo de transmissão, e, embora o cubano Carlos Finley já houvesse publicado sua tese de que a doença era transmitida por um mosquito, um grande número de médicos brasileiros acreditava que a febre amarela era causada por alimentos contaminados.
Em 1904, seria a vez de combater a varíola. "Já havia leis que tornavam obrigatória a vacinação desde 1884, mas essas leis não pegaram", diz José Murilo. O governo resolveu, então, fazer uma nova lei obrigando toda a população a se vacinar, em novembro de 1904. O projeto, que permitia que os agentes sanitários entrassem na casa das pessoas para vaciná-las, foi aprovado na Câmara e no Senado, mas não sem antes quase levar aos sopapos os partidários de Rodrigues Alves e seus opositores, que não eram poucos. Entre eles havia os partidários do ex-presidente Floriano Peixoto, que não se conformavam com um governo civil, como o senador (e tenente-coronel) Lauro Sodré e, na Câmara, o major Barbosa Lima. O senador Ruy Barbosa se manifestou, em plenário, dizendo: "Assim como o direito veda ao poder humano invadir a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme".
Com a querela política, o assunto chegou à imprensa. Os jornais se dividiram: o Commercio do Brazil, do deputado florianista Alfredo Varela, e O Correio da Manhã, de Barbosa Lima, atacavam a vacinação, enquanto o diário governista O Paiz defendia a ideia com unhas e dentes. Logo, não se falava em outra coisa no Rio. Os representantes dos trabalhadores não concordavam com a nova lei, que, entre outras coisas, exigia o atestado de vacina para conseguir emprego, e criaram a Liga Contra a Vacina Obrigatória, que em poucos dias arregimentou mais de 2 mil pessoas.

PUDORES E VIOLÊNCIA

Pela lei, os agentes de saúde tinham o direito de invadir as casas, levantar os braços ou pernas das pessoas, fosse homem ou mulher, e, com uma espécie de estilete (não era uma seringa como as de hoje), aplicar a substância. Para alguns, isso era uma invasão de privacidade e, na sociedade de anos atrás, um atentado ao pudor. Os homens não queriam sair de casa para trabalhar, sabendo que suas esposas e filhas seriam visitadas por desconhecidos. E tem mais: pouca gente acreditava que a vacina funcionava. A maioria achava, ao contrário, que ela podia infectar quem a tomasse. 
Uma população pobre, ignorante e sob o risco de perder as casas, ofendida agora em seus mais íntimos pudores; uma imprensa ateando fogo; políticos apoiando. Estava dada a receita e a panela de pressão já apitava. Voltemos àquela manhã de novembro.
Quando deixamos 1904, policiais e a população trocavam tiros e pauladas pelas ruas do centro da cidade. O corre-corre foi grande a multidão se dispersou, deixando o centro para se reunir mais além, nos bairros populares. Naquele 13 de novembro, houve confusão no Méier, Engenho de Dentro e Andaraí. Vinte e duas pessoas foram presas.
Bonde derrubado pela população Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Mas o pior estava por vir. No dia seguinte, logo cedo, grupos aparentemente desarticulados vindos dos bairros rumaram para o Centro. No caminho viraram bondes, derrubaram postes de iluminação, reuniram entulho no meio das ruas e se prepararam para enfrentar a polícia. No bairro da Saúde, próximo ao porto, a barricada reuniu 2 mil pessoas, segundo relato do Jornal do Commercio, que chamou o lugar de "Porto Arthur", em alusão a um forte na Manchúria, onde japoneses e russos travavam uma sangrenta batalha. Liderados entre outros por Horácio José da Silva, o Prata Preta, os defensores de Porto Arthur estavam armados com revólveres e navalhas. Alguns marcharam com armas nos ombros e se espalhou que tinham até um canhão. Por três dias conseguiram repelir a polícia, mas no dia 16 o Exército, apoiado por tropas de São Paulo e Minas Gerais, invadiu o local, numa ação que contou ainda com bombardeios da Marinha. O suposto canhão era um poste deitado sobre uma carroça.
No dia 14, enquanto o pau ainda comia nas ruas, a confusão chegou aos quartéis. O esforço conspiratório que duraria o dia todo começou logo cedo. O senador Lauro Sodré e o deputado Alfredo Varela reuniram-se no Clube Militar com a cúpula dos militares. No entanto, o ministro da Guerra, marechal Argollo, conseguiu melar o encontro e mandou todo mundo para casa. À noite, uma parte dos conspiradores tentou tomar a Escola Preparatória do Realengo, mas não conseguiu. Outro grupo, liderado pelo próprio Sodré, invadiu a Escola Militar da Praia Vermelha e convenceu cerca de 300 cadetes comandados pelos generais Silva Travassos e Olímpio Silveira a marcharem rumo ao Palácio do Catete. Lá, deram de cara com cerca de 2 mil homens leais ao governo. Houve tiroteio, Lauro Sodré desapareceu, mas o general Travassos foi ferido e preso. Saldo da quartelada: três golpistas mortos e 32 soldados feridos.
Nas ruas, a batalha só terminou no dia 23, quando o Exército tomou um dos últimos núcleos da revolta, o morro da Favela. Pelos cálculos do historiador José Murilo de Carvalho, durante toda a revolta foram detidas 945 pessoas, sendo que 461, todas com antecedentes criminais, foram deportadas para locais distantes como o Acre e Fernando de Noronha. Não há estatísticas oficiais, mas acredita-se que 23 pessoas tenham morrido, segundo as estimativas dos jornais da época, e pelo menos 67 ficaram feridas.
A vacinação obrigatória foi suspensa. Mas o governo manteve a exigência de atestado para casamentos, certidões, contratos de trabalho, matrículas em escolas públicas, viagens interestaduais e hospedagem em hotéis. Nem todos esses cuidados, no entanto, impediram um novo surto de varíola. Em 1908, quando a cidade do Rio de Janeiro registrou quase 10 mil casos, o povo fez fila, voluntariamente, para se vacinar.

Malandro e capoeira

Horácio José da Silva, ou Prata Preta, que comandou mais de 2 mil pessoas na barricada de Porto Arthur, era um "capoeira", termo genérico usado pela polícia para classificar alguém que além de ser exímio lutador costumava ser preso por ficar bêbado na rua, incomodar as mulheres e provocar brigas. Prata Preta tinha cerca de 30 anos, era um negro alto, forte e "dotado de boa saúde", segundo sua ficha na polícia, que o considerava um dos maiores desordeiros do Rio. Morava no centro da cidade e vivia de bicos. Durante os quebra-quebras de 1904, Prata Preta ficou famoso na cidade toda, por ser o mais incansável dos rebeldes.
Os policiais tinham medo dele. Prata Preta ficava nos lugares mais perigosos das barricadas, onde ninguém se atrevia a lutar, e atacava sem parar os soldados. Ele usava dois revólveres, uma navalha e uma faca. Consta que chegou a matar um soldado do Exército durante um ataque a Porto Arthur.
Ele foi um dos primeiros a ser preso quando a cidadela improvisada caiu, e quase foi linchado pelos soldados, tal o ódio que tinham por ele. Mesmo no meio da confusão ele não parou de lutar, e teve que ser metido numa camisa-de-força para não colocar a central de polícia em polvorosa. Prata Preta parou de circular pelas ruas do Rio no fim de 1904, quando foi deportado para o Acre, o "fim do mundo", e nunca mais se ouviu falar dele.

Saiba mais

Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi. José Murilo de Carvalho, Companhia das Letras, 1987
Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. Sidney Chalhoub, Companhia das Letras, 1996 
A Revolta da Vacina: Mentes Insanas em Corpos Rebeldes. Nicolau Sevcenko, Brasiliense, 1994
Oswaldo Cruz: A Construção de um Mito na Ciência Brasileira. Nara Brito, Fiocruz, 1995 sanitarista brasileiro

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