quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Livro: O Processo de Sócrates.



INTRODUÇÃO.


O julgamento imposto em 399 a-C- ao filósofo Sócrates e sua condenação à morte levantaram uma questão, que gira em torno da necessidade de compreender (tentar, ao menos) como uma cidade que desejava ser o próprio símbolo da liberdade condenou à morte um sábio que era famoso em todo o mundo grego, usando o pretexto de que ele corrompia a juventude e não respeitava os deuses da cidade. É necessário, para elucidar a questão, entender o momento histórico pelo qual Atenas passava, é preciso analisar as diferentes imagens registradas do filósofo, algo que só é possível fazer confrontando os escritos de seus discípulos, pois o mesmo não deixou uma linha escrita sequer. Muitos dos fatos relacionados com esses acontecimentos podem chocar os que pensam que a liberdade de expressão e de pensamento é um dos primeiros preceitos entre os direitos do homem. Mas a visão aqui apresentada é a de historiador, a quem não cabe julgar mas apresentar os fatos. Torna-se importante salientar que muitos princípios que usamos em nossa sociedade para avaliar uma situação eram estranhos à sociedade grega. Assim, o processo de Sócrates torna-se também, uma fonte de profunda reflexão sobre essas diferenças.

CAPÍTULO I.

Os motivos subliminares. Compreendendo os motivos subliminares. Atrás da dupla acusação de corrupção e blasfêmia escondia-se na realidade muitas outras questões relevantes na política ateniense. O início do século lV é um momento essencial na história de Atenas. A cidade está dilacerada e devastada por uma grave derrota, finalizando vinte e cinco anos de guerra, durante os quais o território da Ática foi diversas vezes arruinado e uma epidemia de peste dizimou parte da população. A população, no entanto, foi mais atingida pela guerra civil que se seguiu à derrota, pois viu os piores adversários da democracia'se apossarem do poder e instalar o terror apoiados, logicamente, no inimigo espartano. O apego da massa ao regime que mais de meio século estava ligado à grandeza de Atenas permitiu aos democratas caçarem os seus adversários. Os vencedores "fizeram questão de esquecer" que parte da população tinha se engajado atrás dos oligarcas. Mesmo com a moderação dos democratas e respeito à anistia, sobraram muitos rancores para com aqueles que tinham ordenado massacres e prisões arbitrárias, sendo que dentro desse grupo haviam muitas pessoas que pertenciam ao círculo habitual de Sócrates como Carmidio e Crítias, o chefe dos oligarcas. Por esse ângulo. o julgamento de Sócrates não se apresenta como um processo político, e sim de blasfêmia, o que nos obriga a analisar em que consistia o ensinamento do filósofo e no que ele poderia parecer nocivo aos olhos dos democratas atenienses. Como se bem sabe, esse filósofo que atraía os jovens de toda Grécia para ouvirem as suas exposições não escreveu uma linha sequer, era perambulando pelas ruas de Atenas que ele explanava o seu pensamento, o qual só temos conhecimento através dos escritos dos seus discípulos, principalmente Platão e Xenofonte.

É por meio desses dois testemunhos que nos deparamos com duas imagens um tanto quanto divergentes do filósofo, as quais serão aprofundadas no capítulo lll, 1,1. As imagens do filósofo de acordo com seus discípulos. De acordo com Xenofonte, Sócrates era um homem piedoso, parecendo comprometido com um conformismo intelectual sem grande originalidade sendo incapaz de seduzir os jovens ricos de Atenas. Já o Sócrates registrado por Platão era um pensador muito sutil tornando difícil de acreditar que seus propósitos emanem do filho de um modesto escultor e de uma parteira. É quase que impulsivo preferir a visão de Platão, mas é necessário levar em consideração o testemunho de Aristófanes, pois ele reflete o que pensava o modesto cidadão que deliberava na assembléia ou no tribunal. Ele mostra uma imagem de Sócrates como um pensador que se passava por charlatão por afirmar que a lua e o sol eram pedras incandescentes ou que a existência dos deuses não estava comprovada,como Protágoras e Anaxágoras, sofistas que dispensavam seus ensinamentos à juventude dourada de Atenas de onde será proveniente a maioria dos dirigentes da oligarquia. Sócrates era considerado um deles aos olhos dos atenienses, mas ele era um cidadão, enquanto que a maioria desses solistas eram estrangeiros radicados na cidade por um período de tempo limitado. Na democrática Atenas exigia-se que o cidadão cumprisse seus deveres para com os deuses e obedecesse às leis da cidade. Chega-se então ao ponto em que se compreende como aquele que afirmava que a sua única certeza era a de que ele não sabia nada tenha podido parecer um elemento de desordem e uma ameaça ao equilíbrio da cidade aos olhos dos homens que acabavam de reestabelecer a democracia e a ordem na legislação.

2. Uma breve reflexão. Foi na primavera de 399 a.C. que chega ao Pireu a embarcação que retornava de Delos , comovendo de forma dolorosa os discípulos do filósofo Sócrates, pois significava de fato que a condenação à morte pronunciada pelo tribunal popular e cuja execução havia sido adiada por um mês em conformidade com a lei, ia infelizmente se consumar, No dia seguinte, o velho homem sábio, cujos ensinamentos eram seguidos pelos jovens mais brilhantes e promissores de Atenas, beberia o veneno mortal na presença dos seus discípulos, e sua morte exemplar ia suscitar a admiração durante séculos. Sócrates era um cidadão ateniense e Atenas era uma democracia que se baseava na afirmação de dois princípios que eram a igualdade perante a lei de todos aqueles que faziam parte da comunidade cívica e a liberdade que permitia a cada um viver, educar os filhos e pensar como bem desejasse. Estes princípios foram reafirmados com ênfase no discurso que o historiados Tucídies atribuiu ao homem que era símbolo dessa democracia - Pérides - no texto que segue:

"Nosso regime político não se propõe a ter como modelo as leis de outrem, e somos antes exemplos que imitadores. Pelo próprio nome, como as coisas não dependem de um pequeno número mas da maioria, é uma democracia. Trata-se daquilo que cabe a cada um ? A própria lei garante a todos, em suas desavenças privadas, participação igual, enquanto que para os títulos, se alguém se distingue em algum domínio, não é a filiação a uma determinada categoria, porém o mérito, que o faz ter acesso às honrarias; inversamente, a pobreza não implica que um homem, em condições de prestar serviço ao Estado, seja impedido disso pela obscuridade de sua situação. Praticamos a liberdade, não apenas em nossa conduta de ordem política, mas também em tudo que é suspeição recíproca em nossa vida cotidiana : não nutrimos ódio em relação ao nosso próximo, se ele age de acordo com o seu capricho, e não recorremos a afrontas que, mesmo sem causar danos, exteriormente se apresentam como ofensivas(...) Com isso, como remédio para nossas fadigas, asseguramos ao espírito os entretenimentos mais variados : temos competições e festas religiosas que se sucedem o ano inteiro e, ainda, em nossas casas. instalações confortáveis cujo deleite cotidiano livra-nos de toda contrariedade(,,,) Em resumo, ouso dizê-lo i nossa cidade, em seu conjunto, é uma lição viva para a Grécia... (Tucídides,11,37sqq.).

Essas palavras podem até não ter sido pronunciadas exatamente nesses termos, mas traduzem o sentimento comum, remetendo-nos de volta à questão inicial: como pôde a Cidade-Estado que se proclamava sede da liberdade condenar à morte um homem célebre por sua inteligência, um filósofo famoso não só em Atenas, mas em toda Grécia; um pensador admirado pelos atenienses e por todos os estrangeiros que vinham ter com ele. Um sábio que se incluia entre os maiores espíritos da época? Tudo não passou de um conjunto de circunstâncias infelizes ou será que a tal condenação joga sobre a democracia ateniense uma luz inesperada?

O julgamento e a condenação de Sócrates à morte constituem um paradoxo, sendo importante pensar a respeito da situação de Atenas no início do século lV a.C. e sobre as circunstâncias do processo.

CAPÍTULO II

Muito antes do processo.
1. Atenas em 399 a.C.

" Se Atenas, com efeito, durante a maior parte do século V foi a Cidade-Estado mais poderosa do mundo grego, se, no momento em que Pérides pronunciava o elogio da democracia, a guerra, que durava há um ano, ainda não tinha calado suas forças atuantes, não ia mais fazê-lo no'início do século lV. Um quarto e século de conflitos, que, para simplificar, chamamos de guerra do Peloponeso, tinha feito dela uma Cidade vencida, uma Cidade assassinada, uma Cidade dilacerada."

Uma Cidade-Estado vencida, arrasada e dilacerada. Cinco anos antes da instauração do processo contra Sócrates que a frota espartana conduzida por Lisandro entrara no porto do Pireu, o qual havia abrigado a poderosa frota com a qual Atenas exercia a sua dominação sobre o mundo egeu. Pelos termos de paz de Lisandro, Atenas deveria entregar as suas embarcações quase que na totalidade, destruir as muralhas que ligavam a cidade ao Pireu fazendo dela um lugar inexpugnável e aceitar entrar na aliança com Esparta renunciando a seu império marítimo. Essa guerra havia iniciado em 431 a-C- quando Atenas estava no auge de seu poder e glória. O que ocorreu foi que Atenas nesta época parecia a única força capaz de conter a ameaça do Império Persa constituído por Ciro, desde as vitórias em Maratona (490) e Salamina (480). Ela substitui Esparta que era tida como a Cidade-Estado militarmente mais poderosa. Em 478 se formou a Liga de Delos que era uma aliança militar entre Atenas e Cidades-Estados gregas e ilhas do Egeu, cujo centro era o santuário de Apolo na ilha de Delos. Com exceção das grandes ilhas como Quios, Lesbos e Rodes que enviavam uma frota e um contingente militar para sua defesa, os aliados se entregavam nas mãos dos atenienses e pagavam um tributo anual para alimentar o tesouro da Liga que era depositado no santuário. Nos anos seguintes o número e aliados cresceu muito, e desde o início dos anos 60 do século V a posição eminente de Atenas no mar Egeu não era mais contestada, e a ameaça persa se dissipava. No ano de 449 a paz "de Cálias" pôs fim ao conflito que durou quase meio século. Acontece que a aliança começou a mudar de sentido, pois as cidades que renunciaram de sua defesa em favor dos atenienses haviam renunciado à sua liberdade. A principal fonte de informação esse período vem do historiador Tucídies, que registrou a sede de poder que havia tomado conta do povo ateniense. Atenas exercia uma hegemonia na Liga, isso se traduzira pela transferência do tesouro para Atenas e pela sua intervenção ostensiva nos assuntos internos dos membros da Liga. Quem saía da Liga era penalizada com intervenção militar, foi assim com Samos e Eubéia. Guarnições atenienses foram instaladas nas cidades para fiscalizar os aliados, e as terras confiscadas eram concedidas aos atenienses. A instalação de regimes democráticos também era favorecida por Atenas que colocava governadores atenienses a zelar pelos mesmos. Em resumo, Atenas se tornara a detentora do controle sobre todas as cidades da Liga, exercendo um imperialismo que era na realidade político e não econômico. A explosão da Guerra do Peloponeso seria um dos reflexos do descontentamento com o excesso e poder exercido pelos atenienses, guerra que foi desastrosamente imprevisível pois ao final da mesma Atenas encontrava-se arrasada. A população ateniense foi a principal vítima de sua própria guerra, os campos foram devastados não permitindo o cultivo e o consequente sustento dos camponeses. Os ricos viram suas propriedades arrasadas, e seus recursos esvaírem-se poie eles sustentavam a guerra, e como todos acreditavam que ela duraria pouco, os gastos foram muito maiores que o esperado. Uma epidemia de peste assolou Atenas no começo da guerra, diminuindo bastante a população, atingindo principalmente suas tropas de guerra. Ao fim da guerra, Atenas encontrava-se imersa no caos. Todos os seus valores estavam dispersos, conflitos civis eclodiam de todos os lados culminando com perseguições e prisões políticas, Isso aumentava o clima tenso entre os aparentemente conformados atenienses. Torna-se importante a compreenssão da situação em que se encontrava Atenas nessa época, torna-se a ressaltar, para que haja um meio de se tentar compreender como estavam os ânimos dos cidadãos da época, como toda uma cidade revoltou-se com uma esmagadora derrota, e, não esquecendo nunca que Sócrates possuía pessoas de suas relações que participaram ativamente do conflito, e que também recusou-se a delatar as mesmas afim de evitar perseguições. O que foi muito mal visto pelos cidadãos atenienses.

CAPÍTULO lll

Quem era o sábio (Sócrates).

1. Quem era, na realidade, o sábio.

Sócrates, bem na verdade não tencionava por ensinar as pessoas, sobretudo os jovens. O que ocorria era profundos diálogos com seus interlocutores, recheados de questionamentos e reflexões. Tido como um dos maiores pensadores sa humanidade, nós o conhecemos somente através do testemunho de seus discípulos, sendo que o mais conhecido e difundido é, sem dúvida, Platão.

A visão de Xenofonte.

No que diz respeito à Sócrates, a obra de Xenofonte é um tanto quanto superficial, constando de anedotas nas Memoráveis, reflexões no Econômico ou no Banquete, algumas informações referentes ao processo na Apologia, Xenofonte não é um grande pensador, e nas suas obras Sócrates aparece como um homemde bom senso, respeitador dos deuses e das leis, trazendo um juramento crítico sobre a democracia e não desprovido de ironia, mas sem originalidade.

1.2. A visão de Platão.

Completamente divergente da visão apresentada por Xenofonte, a obra de Platão é com certeza muito mais atraente, Toda sua obra gira ao Wdor de seu mestre, com exceção de última, Leis. Na visão de Platão, Sócrates era um personagem muito complexo e sedutor, Dotado de um raciocínio rápido e mestre no manejo da ironia, conduzia os seus interlocutores para onde desejava que chegassem, obrigando-os de certa forma a pensar e formarem suas próprias ideias. A contradição a Que Sócrates levava as pessoas que com que ele dialogavam ocorria através de perguntas sabiamente escolhidas onde ele fezia-se de ignorante e modesto.

1.3. O homem

Muito já foi escrito e trabalhado a respeito do filósofo, de modo que o foco de atenção será voltado para o processo propriamente dito em razão do que pensava Sócrates. Sócrates nasceu por volta do ano de 469 em Atenas. Seu pai era Sofrônisco, artesão-escultor muito renomado; sua mãe, Fenareta, era parteira, os dois de um meio modesto. Casou-se com Xantipa com quem teve filhos. É espantoso que um homem de condições modestas pudesse ter vivido sem trabalhar, pois ele não cobrava para dar seus ensinamentos, o que nos remete ao fato que em muitas passagens sobre sua vida fazem alusão a sua pobreza, Fisicamente ele era pequeno e feio, e isso o envaidecia pois assim mesmo era procurado pelas pessoas mais bonitas de Atenas, a chamada "juventude dourada de Atenas". Seria falso, no entanto, imaginar que ele era rodeado unicamente por essa juventude. Tinha perto de seus amigos fiéis como Críton, Hermógenes, e entre os jovens fiéis os que após a sua morte fundaram a sua própria escola como Ésquino, Antístenes e Platão, logicamente. Vários estrangeiros eram também atraídos pelo pensamento de Sócrates, como Símias e Cebes de Tebas, Eudides e Térpson de Mégara, Arístipo, Cleômbroto e Faidondes que estarão presentes quando Sócrates beberá o veneno. Isso sem citar todos os outros que estiveram com ele em alguns momentos. Como entender o que ele podia ensinar a um público tão heterogêneo? Com certeza, não o que os sofistas ensinavam por dinheiro: a arte de falar bem, de se defender em um julgamento ou a melhor maneira de adquirir riquezas. E também não o que Aristófanes dava a entender, que ele " especulava a respeito dos fenômenos celestes e transformava causas más em boas."(Platão, Apologia, 18b). O texto transcrito a seguir derruba a identificação de Sócrates com os físicos:

"Ele também não discutia, como a maioria dos outros, sobre a natureza do universo e também não pesquisava que os filósofos chamam o mundo, nem por quais leis necessárias se produz cada um dos fenômenos celestes,- ele até mesmo demonstrava que era loucura se ocupar com esses problemas(...) já que mesmo aqueles que se arvoram a falar disso da maneira mais sábia não estão de acordo uns com os outros(...) alguns acreditam que o ser é uno, outros que ele é infinito em número esses últimos que tudo está sempre em movimento, os outros que nada saberia se mover; alguns que tudo nasce e perece, os outros que nada poderia jamais nascer nem perecer(,..) Eis o que ele dizia daqueles que se dedicam a esse tipo de especulações. Ele, ao contrário, sempre se entretinha apenas com coisas humanas, Examinava o que é piedoso ou ímpio, o que é belo ou vergonhoso, o que é justo ou injusto, o que é a prudência ou a loucura, o que é a coragem ou a covardia, o que é o Estado e o estadista, o é o governo e o homem que tem o dom de governar, e todas as outras coisas cujo conhecimento, segundo ele, fazia os homens bons e belos, enquanto que aqueles que as ignoravam mereciam justamente o nome de escravos. (Memoráveis,1,1, 1 1-16).

Sócrates não era, então, nem um físico e nem um sofista, mas sim um sábio: "A repução que me criaram vem apenas de uma certa sabedoráa que está em mim. " (Platão- Apologia, 20d).

Pode-se dizer que ela uma espécie de parteiro e almas, comparando com o ofício de sua mãe, o qual ele muitas vezes partilhava. Sua filosofia era uma moral, ele interrogava a todos sobre os próprios problemas e no entanto ele se abstinha de participar da vida da cidade. A pergunta que paira, então, é "o que pensava ele da democracia ateniense?"

2. A crítica à democracia.

Sócrates não questionava o regime da cidade onde vivia, Atenas, e cujas leis aceitava. Mas emitia sérias críticas ao funcionamento real das instituições democráticas. Questionava a capacidade do povo, das massas, do dêmos reunido, para conseguir julgar o que era bom, belo e justo. Acreditava que a competência num ofício ou técnica não implicava em competência política, sendo que essa mesma competência ele concedia apenas aos jovens atenienses que o cercavam, peocupando-se com questões de cunho filosófico. Talvez o único ponto em que Platão e Xenofonte convergem em sua opinião a respeito de Sócrates é na afirmação do filósofo de que "não se improvisa um homem político".

CAPÍTULO lV.

O processo.

1. Os motivos da acusação:

Os dois motivos pelos quais foi acusado, corromper a juventude e a crença em divindades que não eram da cidade serão brevemente analisados a seguir. É de se pensar se a acusação de que o filósofo corrompia a juventude não tinha uma conotação físico-carnal, pois é sabido que um dos costumes da época era de um adolescente ter um mentor com o qual as relações físicas não eram excluídas, mas não consistiam apenas nesse aspecto. Mas no caso de Sócrates percebe-se que apesar dele gostar de cercar-se de jovens, evitava sucumbir aos prazeres da carne. Portanto tal interpretação não compreende, levando-nos ao entendimento, mais uma vez, de que o julgamento de Sócrates foi uma questão muito mais política do que moral. Com relação a segunda acusação, a de que ele não acreditava nos deuses da cidade, isso se dá pelo fato de não apenas Sócrates, mas vários outros filósofos terem substituído as divindades por abstrações, Pela afirmação de "que o sol é uma pedra e a lua uma terra", presume se que ele não acreditava em nenhum deus. Mas convém também lembrar que a religião grega não era de forma alguma dogmática.

2. O processo.

O tribunal pelo qual foi o sábio julgado constava com 501 juízes, sendo que 280 votaram a favor da condenação e 221 contra, Em sua exposição oral,Sócrates não apiedou os juízes ou mesmo se justificou, pelo contrário, sustentou suas posições e pensamentos, repelindo a condição de parar de filosofar e examinar as pessoas em troca da absolvição, ".. -absolvam ou não me absolvam,- mas tenham como certo que jamais farei outra coisa, mesmo que tenha de morrer mil vezes. " (Apologia, 30b).

CAPÍTULO V

A morte de Sócrates.

1. A sentença.

A sentença do tribunal não ia ser imediatamente aplicada, pois era proibido proceder a uma execução durante o período em que a trirreme de Salamina conduzia a Delos o cortejo de embarcações, a embaixada sagrada que a cada ano chegava lá para comemorar a lembrança da luta de Teseu contra o Minotauro. Durante um mês Sócrates recebeu quase todos os dias os seus amigos na prisão. Em dois diálogos de Platão, o Críton e o Fédon se desenrolam na prisão e se apresentam como transcrição fiel das últimas conversas entre eles. Sócrates, após pronunciada a sentença de sua morte começou a meditar sobre a saída do corpo físico e a imortalidade da alma. Uma reflexão sobre as relações entre o corpo e a alma registrada em Fédon. Em Críton está registrada a possibilidade de fuga oferecida ao sábio, e a recusa do mesmo.

2. A morte de Sócrates.

Na manhã seguinte ao dia em que souberam do retorno da embarcação proveniente de Delos, os discípulos marcaram um encontro bem cedo pois sabiam que seriam os últimos momentos junto de seu mestre. Entre os presentes encontravam-se Apolodoro, Critobulo e seu pai Críton, Hermógenes, Epígenes, Ésquines, Antístenes, Ctésipo, e outros que Platão não cita, sendo que ele próprio estava ausente pois encontrava-se doente. A esposa do sábio, Xantipa, também lá estava carregando o seu filho mais novo, sendo levada para casa em seguida pois se pôs a chorar e a gritar. Isso nos remete a idéia de que Sócrates com certeza preferia passar seus últimos momentos com seus amigos muito mais do que com seus parentes. Chegando a hora de ingerir o veneno mortal, Sócrates pede para antes tomar um banho e depois passar um tempo com seus filhos e parentes para as últimas recomendações. Após, juntou-se aos seus discípulos no mesmo momento em que foi trazido a taça como veneno. Sócrates apenas quis saber como o veneno ia agir e o que era preciso saber, em seguida bebeu sem perder a serenidade.

O trecho a seguir descreve na visão dos seus discípulos seus últimos momentos: "Até aí, quase todos tínhamos tido força suficiente para reter nossas lágrimas,- mas ao vê-lo beber o veneno, e depois, quando já o tinha bebido, não conseguíamos mais permanecer como donos de nós mesmos, Eu mesmo tive dificuldade em me controlar, minhas lágrimas escapavam dos olhos incontroláveis; então cobri minha cabeça e chorava curvado sobre mim mesmo, pois não era a sua infelicidade que eu deplorava, mas a minha, imaginando de que amigo estava sendo privado. Já Críton, antes de mim já não tinha podido conter a suas lágrimas e se levantara do seu lugar. Apolodoro, que antes já não tinha parado de chorar um instante sequer, começou a gritar e seu choro e suas lamentações partiram o coração de todos os presentes, exceto do próprio Sócrates.

"Oque vocês estão fazendo'( ele gritou, "amigos estranhos? Se dispensei as mulheres,era sobretudo para evitar essas lamúrias deslocadas, pois sempre ouvi dizer que era conveniente morrer com palavras de bom augúrio. Portanto, fiquem calmos e firmes." Ao ouvir suas reprovações, enrubescemos e nos abstivemos de chorar. Quanto a ele, após caminhar um pouco, disse que suas pernas estavam ficando pesadas e se deitou de costas, exatamente como o homem havia lhe recomendado. O escravo que tinha lhe dado o veneno, taeando com a mão, de vez em quando examinava seus pés e suas pernas, depois, puxando fortemente seu pé, perguntou-lhe se sentia alguma coisa. Sócrates respondeu que não. Ele o beliscou em seguida por baixo das pernas, trazendo as mãos para cima do corpo, assim nos fazia ver que ele se endurecia e gelava. E declarou, sem parar de tocá-lo, que quando o frio chegasse ao coração Sócrates iria embora. Já a região do baixo ventre começava a ficar insensível quando, levantando seu véu, Sócratesdise – e foram suas últimas palavras - "Críton, devemos um galo para Asdepios, não se esqueça de pagá-lo. " - "Sim, isto será feito'[ disse Críton, "mas vê se tens alguma outra coisa a nos dizer, " A esta pergunta ele não respondeu mais; porém alguns instantes depois, ele teve um sobressalto. O homem descobriu: ele tinha os olhos fixos. Vendo isso, Críton fechou-lhe a boca e os olhos. " (Fédon, 117c-118).

Conclusão.

A morte de Sócrates constitui um acontecimento marcante na história da civilização ocidental. O sábio condenado à morte, vitimado pela intolerância dos homens de sua época torna-se uma fonte inesgotável de reflexões para os homens/mulheres atuais. A coragem com que o filósofo enfrentou a morte e a dignidade para com os seus ideais são até hoje, exemplos não só para os estudiosos do assunto em particular, mas para toda a humanidade. A herança deixada pelo homem comum que se tornou um mito, devido ao seu raciocínio excepcional e a sua coragem para questionar as instituições alicerçadas sobre um regime de governo o qual ele julgava impossível as grandes massas compreenderem, é sem dúvida um dos muitos grandes legados que a civilização grega deixou ao mundo.

Comentários à obra.

A visão que a autora quer nos dar é a da historiadora imparcial, que apenas expõe os fatos e deixa que o leitor vá de encontro às suas próprias conclusões. É realmente tentador fazer um paralelo entre a época atual e a época em que Sócrates foi julgado e condenado. O sábio poderia ter pedido demência, mas não o fez reafirmando sua lealdade aos princípios e idéias que ele mesmo ajudou a difundir. Perseguições político-ideológicas ocorrem até hoíe de uma maneira que chega a ser ostensiva em algumas sociedades, mas o que frequentemente muda é a postura dos líderes de massa. Quem poderia afirmar que, se fosse hoje, Sócrates não teria aceito a possibilidade de fuga oferecida, para poder continuar a difundir o que considerava correto? Ou ainda, quem sabe se, hoje, ele não iria aceitar pedir demência, usando de uma forma estratégica para depois asilar-se politicamente e, posteriormente retornar quando suas ideias estivessem mais consolidadas na cabeça do povo, trabalho que seria feito habilmente por seus fiéis discípulos?

A única resposta possível para essas questões é que ninguém jamais poderá responder com certeza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MOSSÉ,Claude. O Processo de Sócrates. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor Ltda,1990. 166p. Título original: Le Procès de Socrate. Tradução autorizada da primeira edição belga publicada em 1987 por Editions Complexe, de Bruxelas, Bélgica, na coleção "La Mémoire des Siècle".


Por: Prof. Vanessa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário