domingo, 28 de maio de 2017

René Descartes - (1596 - 1650).


René Descartes - (1596 - 1650).

Um lugarejo nas cercanias de Ulm, Alemanha, 1619. De 10 para 11 de novembro, René Descartes, jovem francês engajado nas tropas do Duque Maximiliano da Baviera, vive uma noite extraordinária. Depois de um, período de febril atividade intelectual, o dia transcorrera em meio a grande exaltação e entusiasmo: afinal, parecia ter descoberto os fundamentos de uma "'ciência admirável". O arrebatamento prossegue durante o sono, atravessado por três sonhos sucessivos cujas imagens o próprio Descartes, interpretará como símbolos da iluminação que recebera. e, ao mesmo tempo, como indicação da missão a que deveria consagrar a vida. Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício científico plenamente iluminado pela verdade e, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais. Já havia algum tempo Descartes vinha meditando sobre este tema: a superioridade das obras - saia um edifício, uma cidade, uma legislação - que resultam da atividade de um único homem. Na Alemanha, depois de assistir, em Frankfurt, de julho a setembro daquele ano, às cerimônias e às festividades da coroação do Imperador Ferdinando, Descartes entregara-se a longo período de recolhimento. Havia chegado o inverno e cessaram as manobras militares. Nada perturbava o jovem soldado, que podia então ocupar-se de suas próprias ideias. Ele mesmo descreverá, mais tarde, essa fase tranquila, mas decisiva para seu destino intelectual:". Não encontrando nenhuma conversação que me divertisse e não tendo, além disso, por felicidade, preocupações ou paixões que me perturbassem, ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com meus pensamentos" (Discurso do Método). Um desses pensamentos era, justamente o de como "as construções começadas e concluídas por um único arquiteto são geralmente mais belas e mais bem ordenadas que aquelas que vários esforçaram-se por reformar, servindo-se de velhas muralhas que haviam sido construídas para outros fins". Do mesmo modo, as cidades novas, fruto do traçado ditado pela fantasia de um engenheiro, ofereceriam à razão satisfações que ela não encontra na; "ruas tortuosas e desiguais" das velhas cidades, resultantes da expansão desordenada de antigos burgos.

A ciência seria também uma arquitetura que, embora destinada a abrigar o assentimento de todos os espíritos através de sua dimensão universal, poderia e deveria ser alicerçada pelo trabalho de uma inteligência isolada. Um único espírito, atento exclusivamente às exigências da razão, seria capaz de conceber o plano urbanístico do conhecimento, a "cidade nova" onde todos poderiam habitar em ruas claras de traçado 'perfeito porque integrado numa concepção Unitária. Essa a conclusão a que chega Descartes. E o entusiasmo do dia 10 de novembro e os sonhos que povoaram a noite provinham não somente da descoberta do instrumental que permitiria a Construção da "ciência admirável": resultavam, mais ainda, da convicção de que era ele, Descartes, o arquiteto destinado a traçar o plano e lançar as bases daquela cidade onde não haveria as "ruas tortuosas e desiguais" das múltiplas opiniões acumuladas pelo tempo e ensombradas pela dúvida. A ele cabia a tarefa de inaugurar, desde os fundamentos, o luminoso reino da certeza.

O século XVI foi uma época de profundas transformações na visão de mundo do homem ocidental, época marcada por verdadeira paixão pelas descobertas. No tempo e no espaço abrem-se novos horizontes: eruditos redescobrem antigas doutrinas filosóficas e científicas, forjadas pelos gregos, e em nome das quais torna-se possível constituir uma sabedoria nova, oposta às concepções que prevaleceram na Idade Média; simultaneamente, viajantes e aventureiros rasgam continentes e mares, descobrindo temas e povos. A antiguidade greco-romana renasce através de seus pensadores e artistas, enquanto se constitui uma nova imagem geográfica do mundo. Essa efervescência, que caracteriza a atmosfera intelectual do Renascimento, traz consigo, inevitavelmente, a rejeição das ideias até então vigentes e que estiveram garantidas sobretudo pelo peso de autoridades agora contestadas. Tudo é sacudido ou destruído: a unidade política, religiosa e espiritual da Europa; as afirmações da ciência e da filosofia medievais, calcadas principalmente em Aristóteles; a autoridade da Bíblia, posta em confronto com os dados das novas descobertas científicas; e o prestígio da Igreja e do Estado, abalado pelo movimento da Reforma e pelas guerras motivadas por dissidências políticas ou religiosas. Além disso, se o homem europeu descobre que há ideias bem diversas das que vinham docilmente aceitando como únicas verdadeiras, e se passa a saber que há outros povos vivendo segundo padrões bem diferentes daqueles que lhe pareciam os únicos legítimos, é natural que se espraie uma vaga de descrença e dúvida. No campo filosófico e científico, a superação das incertezas não poderia resultar de correções parciais que tentassem aproveitar as ruínas da visão de mundo medieval. Não era possível utilizar as "velhas muralhas que haviam sido construídas para outros fins". Ao contrário, era preciso começar tudo de novo, encontrar novo ponto de partida e demarcar novo itinerário que conduzisse, com segurança, a certezas científicas universais. As múltiplas opiniões eram caminhos vários e inseguros que não levavam a nenhuma meta definitiva e estável. Era necessário, portanto, que se encontrasse não um caminho - mais um ao lado de tantos outros -, porém o caminho certo, aquele que se impusesse a todos os demais como o único legítimo porque o único capaz de escapar ao labirinto das incertezas e das estéreis construções meramente verbais, para conduzir afinal à descoberta de verdades permanentes, fecundas. Era preciso achar a via - o ódio dos gregos - que levasse à meta ambicionada: precisava-se achar o método para a ciência. Essa e uma preocupação que se generaliza a partir do final do século XVI e vai caracterizar a investigação filosófica do século XVII. Descartes, buscava a razão - que as matemáticas encantavam de matreira exemplar - os recursos para a recuperação da certeza científica.

Os Descartes constituíam uma família de burgueses radicados na região entre 'l'ours e Poitiers, e dedicadas principalmente ao comércio e à medicina. De saúde frágil, René passou o início da infância sob os cuidados da avó, Jeanne Sain, pois perdera a mãe com um ano de idade. E, chegado o momento de começar os estudos, o pai enviou-o, em 1606, ao já célebre colégio jesuíta de La Flèche. Descartes recebeu uma educação impregnada de profundo espírito religioso e imbuída de um civismo que assumia a forma de fidelidade à monarquia. Proveniente de um meio marcado por fortes tradições conservadoras, Descartes conviveu em La Flèche com uma mentalidade imbuída de religiosidade e de submissão às instituições políticas.

A MATEMÁTICA.

Depois dos cursos realizados em La Flèche e em Poitiers - e desencantado com a instabilidade e a ótica das "letras" -, Descartes resolve procurar apenas a ciência - que encontrar em mim mesmo, ou antes, no grande livro do mundo", seguindo o caminho apontado por Montaignte. Ingressa, então, na carreira militar, e vai para os Países Baixos, onde passa a servir sob o comando de Maurício de Nassau, que combatia os espanhóis. Nessa época liga-se por forte amizade a Isaac Beeckman, jovem médico holandês apaixonado pela física - matemática. Paralelamente à decepção causada pelas "humanidades", Descartes já havia sido tocado - certamente desde os tempos do colégio - pela sedução das matemáticas, todos aqueles conhecimentos regidos pelas noções de número e medida., "Eu me comprazia principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à evidência de suas razões", escreverá mais tarde no Discurso do Método. E não sem motivo: ao contrário da fragilidade do argumentas e da dissensão típica das 'humanidades", as matemáticas exibiam uma construção sólida e clara, que a todos se impunha com a força de demonstrações incontestáveis e que atravessara incólume as crises dê pensamento instauradas pelos novos ventos da Renascença. A validade das proposições matemáticas parecia pairar acima das contingências de espaço e de tempo, sugerir o a possibilidade de seguras e perenes verdades que escapassem à corrosão do ceticismo. As matemáticas eram a promessa de se ir além de Montaigne. Mas, ao lado do encantamento pelas matemáticas - estimulado pela comunhão com os interesses de seu amigo Beeckman:-, o jovem Descartes faz duas verificações que o surpreendem: apesar de apresentarem solidez e perfeito encadeamento, as matemáticas serviam então de base para um campo bastante limitado de aplicações (o das artes mecânicas); por outro lado, embora dotadas de tão grande riqueza racional, elas não ensinavam nada de fundamental para os problemas da vida, que permaneciam objetos de especulações vagas. Em 1619, Descartes deixa a Holanda e viaja por vários países: Dinamarca, Polônia, Hungria, Alemanha. Continua: seus estudos e matemática, na mesma época em que ingressa na confraria Rosa-Cruz, caracterizada por um misticismo de índole fortemente racional. O ano de 1619 foi, assim, marcado por grande atividade científica e por uma efervescência espiritual que culminaram nos sonhos da noite de l0 para 11 de novembro. Descartes alcançava então o desvelamento de sua missão filosófica; certo de que existia um acordo fundamental entre as leis matemáticas e as leis da natureza, conclui que a ele caberia a tarefa de reviver e atualizar o antigo ideal pitagórico de submeter o universo aos números, abrindo a via para o conhecimento claro e seguro de todas as coisas. A partir de 1620, Descartes renuncia definitivamente à carreira militar para dedicar-se à investigação científica e filosófica. Realiza novas viagens, inclusive à Itália. Ate esse momento Descartes havia escrito alguns trabalhos, dos quais só se conhecem extratos ou os títulos, onde transparecem suas preocupações científicas aliadas à influência dos temas da sociedade Rosa-Cruz. Os cinco primeiros anos de sua

permanência na Holanda foram dedicados à elaboração de um pequeno tratado de metafísica e, principalmente, à composição de uma obra que deveria abarcar o conjunto da física. Descartes marca já pela roupagem de seu pensamento em "língua vulgar", nacional, a afirmação do espírito moderno, tendente a romper com a latinização unificadora da cultura. Sua saúde, que sempre fora frágil, não resiste, porém, aos rigores do clima nórdico: tendo contraído pneumonia, Descartes morre poucos meses depois de sua chegada (11 de fevereiro de 1650).

Se duvido, penso.

Nos Princípios da Filosofia Descartes compara a sabedoria a uma árvore que estaria presa ao domínio do ser, à realidade, através de suas raízes metafísicas. O tronco da árvore seria a física, ou seja, o conjunto dos conhecimentos sobre o mundo sensível, redutíveis, porém, à sua estrutura matemática. Os ramos representariam as principais artes que aplicam conhecimentos científicos: a mecânica, a medicina, a psicologia, a moral. Por outro lado, a imagem deixa perceber claramente que Descartes, embora desde cedo voltado para ai pesquisas científicas, não considera que estas se bastem a si mesmas: o tronco da física sustenta-se em raízes metafísicas. A maior parte da obra de Descartes é consagrada às ciências; mas ele compreende que não é suficiente pesquisar e resolver problemas científicos - o que faz sobretudo nos domínios da matemática e da óptica -, se, naquele tempo de incertezas, não - consegue ,justificar a própria legitimidade da ciência. Desde os 23 anos Descartes havia aplicado a álgebra à geometria encontrando um método matemático geral e abstrato que fornecia simultaneamente as leis dos números e das figuras. Mas sua ambição é maior, como maior era o âmbito da tarefa intelectual de que se julgara investido, principalmente depois dos sonhos de novembro de 1619. Tratava-se de unificar, com o auxílio do instrumental matemático, todo o vasto campo dos conhecimentos, até então dispersos em débeis construções isoladas. Mas, para isso, era necessário que, antes, o terreno fosse preparado de modo a que nele não medrasse qualquer dúvida. Só então a árvore da sabedoria poderia expandir-se com o pleno viço da certeza. Descartes percebe que existe apenas um caminho que supera a dúvida: o que a atravessa toda, esgotando lhe todas as dimensões. Ou seja: parece-lhe impossível vencer a dúvida evitando-a ou pretendendo instalar-se desde logo numa ágil certeza - e frágil justamente porque ainda não submetida aos testes da dúvida. Descartes aceita o desafio da dúvida que transpassava a atmosfera cultural de sua época; aceita para combatê-la com suas próprias armas. Eis porque duvida de tudo. Adota em princípio a sugestão de Montaigne: o decisivo campo de batalha entre a certeza e a incerteza é o próprio eu. Fazendo a sondagem de suas próprias ideias, verifica que as que parecem referir-se a objetos físicos são instáveis e obscuras, facilmente atingíveis pela incerteza; outras, ao contrário, apresentam-se ao espírito com grande nitidez e estabilidade - exatamente as utilizadas pelas matemáticas (como "figura", "número"). Essas ideias claras e distintas são concebidas por todos da mesma maneira, o que parece mostrar que elas independem das experiências dos sentidos (individuais e imutáveis), constituindo o substrato. Essas ideias inatas: satisfazem plenamente o ideal de construir uma matemática universal que passara o objetivo de Descartes. Com elas - e somente com ideias desse tipo - parecia exequível a construção de uma "cadeia de razões", cujos elos seriar a intuídos com a clareza das evidências matemáticas e interligados com a coerência perfeita das demonstrações de que a matemática fornecia os exemplos. Construída por sucessivas intuições ligadas por vínculo dedutivo, a perfeita sabedoria - aplicável a quaisquer objetos - deveria ser uma tessitura de ideias claras. A clareza das ideias, porém, representa uma garantia apenas subjetiva: porque são perfeitamente claras e distintas é que as ideias se impõem com a força de evidências. Mas quem garante (que a tais ideias, embora claras, corresponda algo real? Nesse ponto de seu esforço de fundamentação da certeza científica, Descartes amplia a dúvida ao máximo, tornando-a "hiperbólica": passa a duvidar até mesmo das ideias claras e distintas, que espírito espontaneamente admite como evidentes. Para levar a dúvida a essa dimensão extrema, Descartes usa de um artificio: a hipótese do '"gênio maligno". O que Descartes, através desse artifício, esta lembrando é que, enquanto se permanecesse apenas no interior da consciência, onde a ciência aparece como uma representação, nada garante, nem mesmo a máxima clareza e o perfeito encadeamento lógico dessa representação, que ela possui um correspondente "lá fora", no mundo objetivo. A hipótese do gênio maligno faz, desse modo, pairar sobre o universo científico a ameaça de ele nada mais ser que uma ficção, uma criação apenas subjetiva, um sonho, embora o mais bem concatenado. No entanto, na medida mesma em que é estendida até sua máxima dimensão e mostra seu tamanho ameaçador, é que a dúvida manifesta seu limite e pode dar lugar à sua superação. De cada nível de conhecimento em que é aplicada - das ideias obscuras provenientes de impressões sensíveis até as ideias claras universais -, a dúvida permite extrair um núcleo de certeza, que cresce à medida que ela se radicaliza: é indubitável que, "se duvido, penso". E quanto mais duvide, mais se repete, reforçando-se, a mesma experiência: se duvidar de que duvido, só posso fazê-lo pensando essa dúvida a respeito da própria dúvida inicial.

Penso, logo existo.

No final da Geometria, obra escrita em 1637, Descartes afirma: "Em matéria de progressões matemáticas, quando se tem os dois ou os três primeiros termos, não é difícil encontrar os outros". Essa ideia de uma ordem natural, inerente à progressão do conhecimento, é fundamental para o projeto cartesiano de construir uma "matemática "universal". A partir do que ele experimenta com campo matemático, Descartes tende a ver o desconhecido como um termo ignorado, mas que será necessariamente descoberto desde que, a partir do já conhecido, seja construída uma "cadeia de razões" que conduza a ele. Generaliza o procedimento matemático que faz do desconhecido um termo relativo a outros termos (o conhecimento existente), e que em função destes pode ser descoberto. O importante - e que constitui o preceito metodológico básico que Descartes aponta no Discurso do Método é que só se considere como verdadeiro o que for evidente, ou seja, o que for intuível com clareza e precisão. Mas a ampliação da área do conhecimento nem sempre oferece um panorama permeável à intuição, e, consequentemente, adequado de saída à aplicação do preceito da evidência. Eis por que Descartes propõe outros preceitos metodológicos complementares ou preparatórios da evidência: o preceito da análise (dividir cada uma das dificuldades que se apresentem em tantas parcelas quantas sejam necessárias para serem resolvidas), o da síntese (conduzir com ordem os pensamentos, começando dos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para depois tentar gradativamente o conhecimento dos mais complexos) e o da enumeração (realizar enumerações de modo a verificar que nada foi omitido). Tais preceitos representam a submissão a exigências estritamente racionais. E justamente o que Descartes prescreve como recurso para a construção da ciência e também para a sabedoria de vida é seguir os imperativos da razão, que, a exemplo de sua manifestação matemática, opera por intuições e por análises. De nada adiantaria afiar o gume do instrumental analítico se ele, porém, não atingisse um alvo real - é o que Descartes parece mostrar nas. partes do Discurso do Método e das Meditações, em que a exacerbação da duvida, por via da hipótese do gênio maligno, coloca em xeque a objetividade do conhecimento científico. Se da máxima incerteza desponta uma primeira certeza - "Se duvido, penso" - esta é ainda, contudo, uma certeza a respeito da própria subjetividade ("penso'). Nada fica até aí garantido a respeito de qualquer realidade subsistente. Todavia já e um primeiro elo na cadeia de razões - e basta uma primeira certeza plena para que a "ordem natural", como numa progressão matemática, faça jorrar luz sobre o que até então permanecia desconhecido. Descartes procura provar a existência de Deus, garantia última de qualquer subsistência e, portanto, fundamento absoluto da objetividade. A passagem da certeza a respeito da existência do pensamento para a certeza sobre a existência do mundo físico pressupõe, assim, o apoio em Deus. Deus serve de intermediário entre duas certezas: a de que "sou uma coisa que pensa" e a de que tenho realmente um corpo. ações entre corpo e espírito. O dualismo cartesiano será substituído, dentro mesmo da vertente do racionalismo moderno, por outras explicações sobre a relação corpo alma.

A MORAL PROVISÓRIA.

A física cartesiana representa uma aplicação de sua, metafísica, Deus garante o conhecimento científico constituído a partir de ideias claras. Baseada primariamente no plano do pensamento, a física cartesiana resulta, assim, de construções abstratas, regidas pela razão. Descartes reconhece, que os eventos do mundo físico não são facilmente absorvidos pelas ideias claras ligadas por cadeias dedutivas. De qualquer modo, porém, a física cartesiana mostra o junto tal ele se apresenta: constituído apenas pela extensão, que é a essência da corporeidade. A aplicação das exigências estritamente racionais à compreensão do mundo físico leva Descartes a concebê-lo como finito e pleno: a matéria seria dividida em partículas perfeitamente contínuas (não existiria o vazio). Num universo assim cheio, toda partícula que se move só pode fazê-lo na medida em que ocupa o lugar de outra que também se move. Porém o mais importante é que Descartes concebe que esse movimento está submetido a uma determinação tal que, se nada o afetar, ele deverá realizar-se de modo retilíneo e uniforme, segundo o princípio de inércia. Descartes reconhece que num mundo em que, devido- àquele princípio, as partículas que constituem a matéria deveriam mover-se retilineamente, de fato elas se movem em trajetórias circulares - o que significa que o princípio de inércia é um princípio geral, mas que não se efetiva nunca. Fora deste mundo é que uma partícula se moveria em linha reta e uniformemente: continuando a tradição platônica, Descartes vê o mundo físico como um caso particular de um mundo ideal, este alcançável apenas pelo intelecto. Também na consideração das ações humanas Descartes reconhece que o propósito de generalizar as exigências de uma razão matemática encontra obstáculos: a urgência da ação demanda a aceitação de imposições puramente factuais. Por isso, embora a pretensão de criar uma "matemática universal" contivesse o ideal de uma sabedoria, guiada pela razão e aplicável às contingências da vida, Descartes é compelido a propor uma "moral provisória" - espécie de arte de ser feliz, apesar das dúvidas que possam persistir no julgamento que se aço sobre as coisas. Essa moral recomenda o conformismo social, a obediência às leis e aos costumes do país. O que confirma que a formação conservadora de Descartes, fruto do meio familiar e social e fortalecida pela atmosfera cultural de La Flèche, deixou marcas no seu pensamento. Por outro lado, mostra que o destino de Giordano Bruno e de Galileu sugeria uma prudência que pautou não apenas a vida como também certos aspectos da obra de Descartes. Mesmo quando ampliada ao máximo, a dúvida cartesiana, que chegou a atingir as ideias claras da matemática, jamais se voltou para os temas políticos e sociais. Será necessário aguardar o século XVIII para que, na França, em nome da razão analítica prescrita pelo cartesianismo, o poder político e as instituições sociais sejam julgados e condenados, em nome do ideal de uma sociedade constituída por indivíduos livres e iguais.
FONTE: Coleção: Os pensadores "Descartes".

imagem: explicacoesdematematicaonline.com


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